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Aflora-Núcleo Acre discute Convenção OIT 169


Sem169a jul 2012Clique na imagem para ampliar

Na 2a feira, dia 16 de julho, em Rio Branco, Acre, o Laboratório de Antropologia e Florestas (Aflora) realizou um seminário interno, embora não fechado, sobre a Convenção 169 da OIT.

Com a presença de pesquisadores do Aflora e outras instituições (como a Comissão Pró-Índio do Acre e a Funai), o objetivo foi aprofundar o entendimento sobre a Convenção, em especial a questão do “consentimento livre, prévio e informado” (CLPI), seus limites e possibilidades.

Uma primeira discussão girou em torno das origens da noção de CLPI, referidas a um contexto de descolonização e de debates sobre como “integrar” as populações desses países (notadamente da África e sudoeste asiático, mas a América Latina também está no horizonte) à economia, o que explicaria a Convenção de então (a 157) ter sido uma iniciativa da OIT (Organização Internacional do Trabalho). No final dos anos 80, a 157 passa por uma revisão. Não se tratava mais de um contexto propriamente de descolonização, e a questão que se colocava poderia ser assim formulada: como pensar, agora num contexto de “direitos humanos”, (ainda) a integração das pessoas? A ideia de direitos humanos implicando na liberdade de escolha do indivíduo; o consentimento à produção de sujeitos autônomos, racionais, aptos a decidirem por si mesmos. Há então uma ideia de “igualdade” que o CLPI permitiria vigorar entre partes em processo de negociação sobre interesses não convergentes.

Em realidade, a pergunta em uma consulta trás também uma resposta. Este foi um outro ponto sobre o qual conversou-se bastante: o risco de uma despolitização do instrumento jurídico do CLPI. Afinal, o contexto histórico de seu surgimento e as conjunturas onde é acionado são marcados por situações de coerção e desigualdades de vários tipos entre as partes, a luta política correndo o risco de ser ofuscada pelo discurso do “diálogo entre iguais”. Não são iguais que conversam, e o objeto de consentimento é ele mesmo uma demanda da parte, digamos, “mais forte”. Michel Foucault foi bastante lembrado quanto a produção de discursos que criam “sujeitos de direito”, “livres”, e legitimam perversos processos de dominação camuflados. Neste sentido, a regulamentação da 169 se dá num contexto internacional de desterritorialização do capital e um maior assédio sobre territórios controlados (embora nem sempre regularizados) por populações tradicionais. No vizinho Peru, a recente regulamentação do CLPI obedeceu claramente a esta lógica: a de dar segurança jurídica a empresas e investidores frente à resistência indígena. Observa-se no Brasil que grandes obras de infra-estrutura e mineração, por exemplo, estão acessando justamente terras que estariam fora do mercado, e a um custo zero já que unidades de conservação e terras indígenas são terras da União, e muitos territórios não regularizados incidem sobre terras públicas.

 Mas o fato da 169 não estar ainda regulamentada tem garantido brechas, como a não equacionada discussão sobre o caráter vinculante ou não de um veto que resulte de um processo de CLPI. A 169 é parte do direito internacional e, enquanto tal, tem preponderância sobre o direito interno (leis que derivam da Constituição), em especial os chamados Direitos Humanos. Sua regulamentação, no contexto atual (Belo Monte, PAC, perfil do Congresso Nacional), é arriscada. No início deste ano, a constituição de um GT sobre o tema sem qualquer representação da sociedade civil é no mínimo suspeita.

Por outro lado, ponderou-se que a 169 tem sido utilizada por povos e comunidades como um instrumento de defesa de seus territórios, e falou-se da importância de registrar e monitorar estes usos e seus desdobramentos. Analisando rapidamente alguns dos artigos da 169, observa-se que há brechas estratégicas para garantia não só de direitos contra agressões de fora, mas também de fortalecimento de instituições locais e modos de vida singulares. Por exemplo, no artigo 2, letra c, que trata da eliminação de diferenças sócioeconômicas, diz-se que isto deve ser feito “de maneira compatível com suas aspirações e modos de vida”. O Bolsa-Família, por exemplo, política social do governo que foi estendida aos índios, poderia ser facilmente questionada por sua inadequação, e mesmo violência, as tradições desses povos.

Talvez seja possível afirmar que houve uma certa tensão (mas não polarização) durante este primeiro seminário. De um lado, uma posição que enxerga a 169 a partir do papel que ela pode ter e tem tido na defesa de direitos, territoriais em especial, de povos e comunidades em embates com o grande capital. De outro lado, a perspectiva de que a 169 encerra em si uma ontologia, a do nosso direito e da nossa sociedade “branca”, o que de alguma forma pode nos colocar (nós pesquisadores, ativistas, antropólogos) na desconfortável posição de agentes de dominação ontológica. Embora, é verdade, como foi dito, a OIT não veio para abrir um debate entre ontologias, o tema dela objeto – direitos de povos indígenas e tribais – a coloca inevitavelmente no meio de um “empurra-empurra” de ontologias. Neste sentido, uma regulamentação por demais “amarrada” põe sob risco as linhas de fuga que a flexibilidade da redação original deixa escapar.

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