CARTA EM SOLIDADARIEDADE À CACICA MIRIAM TEMBÉ
Nós, pesquisadoras e pesquisadores do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA) atuantes em territórios tradicionais dos municípios de Acará, Tomé-Açu e Tailândia, Pará, vimos a público manifestar solidariedade total e irrestrita à cacica Miriam Tembé, da aldeia I’xing, mantida sob custódia do sistema penitenciário do estado do Pará desde o dia 3 de janeiro de 2024 Nessa data, Miriam Tembé procurou a Delegacia de Polícia Civil de Quatro Bocas, Tomé-Açu, para denunciar as ameaças que vinha sofrendo em decorrência da invasão de sua aldeia. Na ocasião, sem nunca ter sido intimada a prestar esclarecimentos sobre o caso, foi presa e enviada ao Centro de Recuperação Feminino (CRF), localizado em Ananindeua-Pará, distante a quase 200 km de sua família.
O encarceramento de Miriam mediante um processo de criminalização sigiloso e estapafúrdio apoia-se na acusação de que a referida liderança indígena teria praticado atos delituosos de obstrução processual e ameaça a testemunhas, no curso de uma investigação policial que apura o suposto homicídio de seu irmão Manoel Tembé em meados de 2023. Na versão sustentada pela autoridade policial, a cacica estaria agindo para proteger seu filho e outro parente próximo, ao tentar interferir na obtenção de provas do ocorrido.
Os familiares de Miriam, ainda enlutados pela perda recente de um ente querido e agora devassados pela restrição de liberdade dela, repudiam com veemência essa imputação e negam a prática de quaisquer atos criminosos.
A decretação do sigilo processual solicitado pelo delegado de Quatro Bocas, Tomé-Açu, e concedido pelo juiz da comarca local, além de causar estranheza, tende a dificultar a repercussão do caso e a restringir as possibilidades de denunciar publicamente os motivos de sua prisão injusta e arbitrária. Para se ter uma ideia, o próprio Ministério Público Federal – MPF, ente constitucionalmente responsável pela defesa dos povos indígenas, foi impedido de ter acesso aos autos do processo e precisou recorrer à segunda instância, ou seja, ao Tribunal de Justiça do Estado do Pará, para conseguir acessá-lo.
As práticas jurídicas do aparelho repressor oficial que resultaram no encarceramento da cacica Miriam Tembé atentam brutalmente contra a dignidade desta liderança e acendem o alerta de agravamento da criminalização de quilombolas, indígenas e ribeirinhos dos territórios tradicionais situados nos municípios de Acará, Tomé-Açu e Tailândia, alvos preferenciais da política de morte representada por megaempreendimentos do agronegócio do dendê e mais recentemente da soja, da mineração de bauxita, de projetos de venda de créditos de carbono, da extração madeireira e de infraestrutura e logística. Prender líderes sociais é uma desonra que visa manchar a imagem, ferir reputações, fabricar “fichas criminais”, causando um sem-número de constrangimentos e infortúnios na vida social.
Por fim, sublinhe-se as condições desumanas e insalubres do cárcere no qual Miriam Tembé encontra-se mantida desde o início do ano. De acordo com denúncia pública formulada pela Associação Indígena Tembé do Vale do Acará – AITVA, em 22 de janeiro de 2024, consoante informação das advogadas que a visitaram, “Miriam estava com a mesma roupa íntima, sem colchão e sem água potável, bem como não foi permitido à família levar qualquer mantimento, roupa ou remédios para ela”. Ademais, embora o estado de saúde dela seja crítico devido ser portadora de Síndrome de Guillain Barré, adquirida após reiteradas infecções por SARS-Cov 2 (Covid-19), lhe foi negado atendimento médico no Centro de Recuperação Feminino de Ananindeua.
Todos os pontos aqui descritos espelham uma multiplicidade de abusos e violações de direitos que necessitam ser imediatamente cessados. Como pesquisadoras e pesquisadores comprometidos com os modos de existência, as territorialidades e os direitos de povos e comunidades tradicionais vimos a público nos solidarizar com o povo Tembé, clamando pela libertação da cacica Miriam Tembé.
Belém, 24 de janeiro de 2024.
Rosa Elizabeth Acevedo Marin
Elielson Pereira da Silva
Maria da Paz Saavedra