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NOTA PÚBLICA DAS ENTIDADES REPRESENTATIVAS DAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS DE ALCÂNTARA SOBRE A RETIRADA DO GRUPO DE TRABALHO INTERMINISTERIAL (GTI / ALCÂNTARA)


NOTA PÚBLICA DAS ENTIDADES REPRESENTATIVAS DAS COMUNIDADES
QUILOMBOLAS DE ALCÂNTARA SOBRE A RETIRADA DO GRUPO DE
TRABALHO INTERMINISTERIAL (GTI / ALCÂNTARA)

                As entidades representativas das comunidades quilombolas de Alcântara/MA, participantes do Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) instituído pelo Decreto n. 11.502, de 25 de abril de 2023, manifestam nesta Nota suas considerações e posicionamento a respeito do trabalho desenvolvido pelo Grupo até o presente momento.

              O grupo interministerial, instituído em abril de 2023, efetivamente iniciou seus trabalhos no mês de setembro do mesmo ano. Desde o início das reuniões, as entidades representativas vêm ocupando as quatro vagas destinadas à representação quilombola. Ao longo das 05 reuniões até agora realizadas, ficou evidenciado que o propósito do mesmo é encontrar uma forma de conciliação entre os interesses dos militares da Força Aérea Brasileira e os direitos ancestrais ao território tradicional, aos recursos naturais e à propriedade coletiva. O Programa Espacial Brasileiro, que arroga para si a prerrogativa de desenvolvimento do Centro de Lançamentos para fins comerciais, porém, nunca apresentou estudos técnicos que justificassem a necessidade de expansão da área atualmente ocupada pelo Centro de Lançamento – de 8,7 mil/ha para 21,3 mil/ha – sobre o território quilombola; tampouco, apresentou qualquer estudo de viabilidade econômica que permita saber ou estimar quais as reais vantagens econômicas geradas pela aludida política de privatização espacial a ser desenvolvida a partir de Alcântara e que, segundo o governo, demandaria a expansão da Base espacial.

             Tais informações, segundo o Documento Base do Protocolo de Consulta e Consentimento Prévio das comunidades, constituem primeira etapa necessária para o avanço da consulta prévia, pois possibilitariam o consentimento informado quanto às justificativas, características, viabilidade e impactos da expansão do empreendimento que atingirá, ao menos, 27 comunidades quilombolas do litoral (cerca de 2 mil pessoas). A conduta do Estado, ao negar acesso ao mínimo de informações sobre a sugerida expansão do CLA, atinge por completo a noção de uma Consulta informada.

             O GTI, contudo, não tem buscado solucionar a dívida histórica do Estado brasileiro de titular as terras quilombolas. Ao invés disso, o Governo Federal “busca alternativas para a titulação territorial” com o mero intuito de reiniciar processo de conciliação dos interesses estatais com os direitos das comunidades no que concerne à utilização de área de 12,645 ha., pertencente ao território quilombola, localizada no litoral. A tentativa conciliatória, prevista no Art. 11 do Decreto 4.887/2003 que regulamenta a titulação das terras ocupadas por remanescentes de quilombos, já ocorreu e se estendeu por longos cinco anos, tendo sido iniciada em maio de 2008 e encerrada pelo Diretor da Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal (CCAF) em janeiro de 2013. O encerramento do processo, sem atingir os objetivos conciliatórios, decorreu da falta de providências dos próprios organismos estatais interessados.

            Ademais, segundo a Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil em 2002, a conciliação entre projetos dessa natureza, por envolver direitos de povos e comunidades tradicionais, deve se dar, necessariamente, mediante procedimento de consulta e consentimento prévios, livres, informados e de boa-fé.

            Conforme o Decreto 11.502/2023, a composição do GTI conta com 13 representações ministeriais e apenas 4 representações quilombolas, o que revela um drástico desequilíbrio de poder na representatividade dos participantes. Ressalte-se que nenhuma representação quilombola de Alcântara ou de instituição que lhes assessore foi consultada para a edição do Decreto, recebido com grande surpresa quando anunciado na audiência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em abril de 2023.

            Desde o início dos trabalhos, as entidades quilombolas alertaram para o desequilíbrio na sua representatividade e suas possíveis consequências. Os pedidos de equiparação de representação não foram atendidos. Igualmente não foi respeitada a solicitação de que, pelo menos, pudessem se somar ao grupo outras entidades, públicas e privadas, com conhecimento técnico sobre o caso, que há décadas atuam em parceria com os quilombolas. Decisões como essas evidenciam que o GTI não tem o compromisso de estabelecer diálogo que, efetivamente, respeite o equilíbrio de forças e as formas de auto-organização das comunidades. De igual modo, reproduz a postura autoritária com a qual o Estado brasileiro trata o caso Alcântara há mais de quarenta anos.

            Essa situação também vai de encontro ao que consta no Documento Base do Protocolo Comunitário sobre Consulta e Consentimento Prévio Livre e Informado (CCPLI) das Comunidades Quilombolas do Território Étnico de Alcântara, publicado e encaminhado formalmente ao Governo Federal, em agosto de 2019. Ali está estabelecido pelos quilombolas o caminho para a efetivação de sua Consulta. Essa escolha faz parte do direito à autodeterminação dos povos tribais, protegido pela OIT.

           Por essa razão, as representações quilombolas participantes do GTI acreditaram que o Governo Federal respeitaria o referido Documento Base, cumprindo as diferentes etapas ali previstas. Isso nunca ocorreu! Ao contrário, conforme consta no artigo 2º, II, do referido Decreto n. 11.502, o governo pretende “formular proposta de ato normativo que regulamenta o Protocolo de Consultas Prévias, Livres e Informadas às Comunidades Remanescentes de Quilombos de Alcântara” em clara afronta ao princípio da autodeterminação dos povos, presente na Convenção n. 169 da OIT. Essa proposta tem sido reiteradamente rechaçada pelas representações quilombolas no GTI, por entender que ela ofende a referida Convenção. As representantes também apontam como quebra da boa-fé a realização de reunião trabalho entre consultorias jurídicas ocorrida ainda no mês de dezembro de 2023 sem a presença das assessorias jurídicas das representações quilombolas
para tratar de propostas e instrumentos ou cenários jurídicos hipotéticos de eventual acordo de compatibilização dos interesses em questão. Fato que demonstra desprezo em oportunizar efetivamente às comunidades participação nos espaços de decisão e debate, reduzindo as entidades representativas a mera participação alegórica com vistas a legitimar ou anuir a decisões tomadas no âmbito dos órgãos governamentais.

             Diante deste contexto, as entidades representativas das comunidades quilombolas de Alcântara comunicam publicamente sua retirada provisória do Grupo de Trabalho Interministerial. A permanência das representações quilombolas em tal fórum, como aqui justificado, não resultará na titulação das terras aos quilombolas, na sua inteireza e plenitude, conforme historicamente reivindicando. Ao contrário, transmite uma falsa noção de consulta realizada às comunidades quilombolas, legitimando propostas que desconsideram as normas internacionais de direitos humanos e as decisões judiciais já proferidas pelo Poder Judiciário.

             Ressaltamos que o ingresso das entidades representativas das comunidades de Alcântara no GTI se deu como ato de boa-fé, movido pela crença de que o atual Governo iria, concretamente, mudar o rumo histórico até aqui dado ao caso de Alcântara. A retirada dessas entidades da participação do grupo interministerial dá-se de forma coerente com a luta histórica pela garantia incondicional da titulação do território, que requer um diálogo intercultural visando o consentimento informado das comunidades com base nos princípios estabelecidos pela Constituição Federal
e pela Convenção Interamerica de Direitos Humanos, e Convenção n. 169 da OIT.

             As entidades representativas não descartam a possibilidade de reconsideração do gesto de retirada do GTI, mas é preciso que governo brasileiro ofereça as condições justas e equilibradas para o debate e, principalmente, disponibilize estudos técnicos e científicos que permitam às comunidades formar opinião e tomar decisões, a partir de dados reais e concretos, bem como apresente o planejamento das ações pretendidas. Consideramos extremamente grave que o Estado não possua, em 40 anos, estudos técnicos e científicos sobre seu projeto aeroespacial, e menos ainda, sobre a pretendida expansão do CLA.

            Não é admissível, nem jurídica, legal ou eticamente aceitável que se pretenda expulsar comunidades tradicionais de suas terras ancestrais em nome de uma expectativa de projeto, dada a completa ausência de estudos e dados reais sobre a proposta. Mais inadmissível ainda que o Estado brasileiro venha há mais de três décadas negando o direito de propriedade coletiva das comunidades quilombolas de Alcântara em prol de uma expectativa de mercado – aeroespacial – sustentada pelos militares, porém, sem qualquer base técnica e parâmetros/estudos econômicos públicos, conforme demonstrado nas reuniões do GTI. Não resta alternativa ao governo brasileiro, senão a imediata titulação do território, este sim, fundamentado e reconhecido em peças técnicas, acadêmicas e jurídicas amplamente conhecidas por órgãos governamentais.

           Em uma eventual reconsideração e retorno ao GTI, consideramos importante que seja precedido de uma audiência com o Presidente Lula para que se possa debater o dever constitucional de titulação do território, na sua totalidade; conforme reiteradamente afirmado no GTI, a imediata titulação do território é condição primeira para o avanço de qualquer debate e negociação com o Estado brasileiro. Nenhum povo planeja seu futuro e decide sobre seu destino sem o título de propriedade em mãos.

            Por fim, reafirmamos nosso compromisso de continuar mobilizando, assim como de informar nossas comunidades sobre os trabalhos e propostas produzidas até a presente data no âmbito do GTI. Reafirmamos ainda: direito constitucional não se negocia, se aplica! Exigimos que o governo federal cumpra com seu dever constitucional de titular o território quilombola de Alcântara nos termos do laudo antropológico, produzido no âmbito do Inquérito Civil Público nº 08.109.000324/99-28 do Ministério Público Federal.

                                                                         Alcântara/MA, 26 de janeiro de 2024.

Associação do Território Étnico Quilombola de Alcântara – ATEQUILA
Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara – MABE
Movimento de Mulheres Trabalhadoras de Alcântara – MOMTRA
Sindicato dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares de
Alcântara – STTR/Alcântara

 

 

Centro de Lançamento de Alcântara; base espacial instalada em território quilombola na década de 1980 – © Warley de Andrade/TV Brasil

 

Segue documento para download:

NOTA DAS ENTIDADES REPRESENTATIVAS DAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS DE ALCÂNTARA SOBRE O GRUPO DE TRABALHO INTERMINISTERIAL (GTI – ALCÂNTARA)-3

 

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