Fonte: amazoniareal.com.br
Por: Elaíze Farias
O coração do artista plástico, desenhista, pesquisador e liderança indígena, Feliciano Pimentel Lana, de 83 anos, do povo Desana, parou de bater na manhã de terça-feira (12) em consequência de uma parada cardiorrespiratória e suspeita de novo coronavírus, em sua casa na comunidade São Francisco, em São Gabriel da Cachoeira, no Alto Rio Negro, noroeste do Amazonas. Segundo sua família, ele tinha sintomas de febre e dor, mas não chegou a ser atendido por um médico ou testado por Covid-19, como muitos povos indígenas que vivem em regiões de difícil acesso na Amazônia Ocidental.
Referência da cultura e do conhecimento dos povos do Alto Rio Negro, a morte de Feliciano Lano repercutiu além das fronteiras do Amazonas, pois sua obra influenciou os contadores de histórias e pesquisadores brasileiros e estrangeiros. Seu nome na língua Desana era Kenhiporã, que significa “filho dos desenhos dos sonhos”. Feliciano nasceu na aldeia de São João Batista, no rio Tiquié, no Distrito de Pari-Cachoeira, em 1937. Ele era filho de Manuel Lana, da etnia Desana, e de Paulina Pimentel Lana, da etnia Tukano.
Feliciano Lana é autor dos desenhos que acompanham as histórias do clássico “Antes o Mundo Não Existia”, contadas pelo seu tio Firmiano Lana e pelo seu primo-irmão Luiz Lana [que também assina as ilustrações], obra reconhecida mundialmente.
Seus desenhos também constam em diferentes publicações de pesquisadores ou de obras sobre o povo Desana do grupo Kēhoriporã e em exposições. Feliciano também é autor (histórias e desenhos) de “A origem da Noite & Como as mulheres roubaram as flautas sagradas”, editada pela EDUA 2009.
“Ele criou uma nova forma de contar as histórias dos antepassados. Jogou as histórias para dentro dos desenhos para que ficassem mais visual. É uma notícia impactante a morte dele”, disse à agência Amazônia Real o fotógrafo Paulo Desana, de São Gabriel da Cachoeira, que está desenvolvendo um projeto sobre os desenhos e as histórias contadas por Feliciano.
Paulo Desana é autor de um estudo que conta história pessoal e a trajetória de Feliciano Lana, desde a época em que este passou pelo internato salesiano e tomou um rumo na vida trabalhando em diversos ofícios na juventude: ajudante de lavrador e limpeza de fazenda – na época em que morou na Colômbia, mecânico de trator e seringueiro. Para o fotógrafo, Lana é uma “referência no mundo artístico” que influenciou as artes, as pinturas e as narrativas mitológicas.
A notícia da morte do líder Desana, Feliciano Lana, foi anunciada por uma enfermeira do Polo Base Juruti por meio da radiofonia e posteriormente pela rede social Whatsapp, que tem sido a única forma mais rápida de comunicação de quem vive em uma região de difícil acesso nesta parte do Amazonas, na fronteira com a Colômbia e Venezuela, além da radiofonia. Na cidade de São Gabriel da Cachoeira, o presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), Marivelton Baré, informou à Amazônia Real que o sepultamento do artista plástico foi realizado na comunidade São Francisco.
Marivelton Baré é presidente do Comitê de Enfrentamento e Combate à Covid-19 em São Gabriel da Cachoeira, município distante de Manaus a 850 quilômetros. Dos 45 mil habitantes, mais de 25 mil pessoas vivem em 750 comunidades indígenas distribuídas em 11 terras indígenas na região do Alto Rio Negro, que abrange os municípios de São Gabriel da Cachoeira, Santa Izabel do Rio Negro e Barcelos.
O município de São Gabriel da Cachoeira registra um avanço preocupante dos casos de coronavírus. Desde o dia 26 abril, quando foram divulgadas as primeiras notificações da doença, até esta terça-feira (12 de maio), são 137 casos confirmados de Covid-19 e dez mortes, sendo a maioria registradas em indígenas. Como publicado anteriormente, único hospital da cidade não tem unidade de terapia intensiva e conta apenas com sete respiradores, tendo faltado cilindros de oxigênio para os pacientes.
Primeiras pinturas da mitologia
Em suas pesquisas, o fotógrafo Paulo Desana conta que, depois de trabalhar em vários lugares, chegando a morar um período na Colômbia, Feliciano Lana retornou para sua aldeia em 1960, onde se casou com Joaquina Machado, mas “logo se embrenhou na mata atrás de novos seringais”. Posteriormente, retomou os estudos para então voltar a trabalhar na roça para manter a família.
A reviravolta aconteceu em 1965, “quando começa a desenvolver técnicas de pintura com tinta guache/aquarelas e desenhos a nanquim”, diz Paulo. Um dos grandes influenciadores foi o Padre Casimiro Béksta (1924-2015), religioso salesiano que ajudou Feliciano nas suas pesquisas sobre mitologias do Alto Rio Negro. O Padre Camisimiro foi um dos maiores pesquisadores sobre a cosmologia dos povos indígenas daquela região.
“Gravava os mitos narrados pelo seu sogro, o tuxaua Manuel Machado, de Pari-Cachoeira e enviava as fitas para Manaus, ao padre. Como tinha que informar sobre alguns detalhes dos mitos (trovões, etc.) que recolhia de Manuel Machado, não apenas forneceu um manuscrito de duas páginas datilografadas, como criou mais de 50 aquarelas ilustrando a criação do universo, o surgimento da humanidade, de um ponto de vista amazônico”, diz Paulo Desana.
Na década de 1970, o trabalho de Feliciano foi apresentado ao escritor Márcio Souza, que, influenciado e inspirado na narrativa Desana, montou o libreto, em parceira com Aldísio Filgueiras, da ópera “Dessana, Dessana”. A composição foi do maestro Adelson Santos. “Os desenhos de Feliciano percorreram o mundo, adquirindo uma dimensão internacional. Foram expostos em São Gabriel, Manaus, no Rio de janeiro, na Alemanha, em mostra organizada pelo Museu de Etnologia de Frankfurt, na Espanha e na Itália, em edições do livro ‘Antes o mundo não existia’. Atingiram, portanto, um público letrado, urbano, com hábitos de leitura, frequentador de museus, galerias e salas de exposições. Possui trabalhos com pesquisadores americanos”, escreve Paulo.
Em Manaus, há uma exposição permanente de Feliciano Lana com desenhos e diversas narrativas do povo Desana chamada “Peixe-Gente”, no Museu da Amazônia (Musa), que fica no Largo São Sebastião, no centro da cidade. O idealizador da exposição, antropólogo Jaime Diakara, também do povo Desana, conta que o espaço foi pensando para que os trabalhos de Feliciano ficassem em definitivo no Musa. Antes disso, desenhos, pinturas, protótipos de armadilhas de peixe e cobras e totens faziam parte de outra exposição, no Jardim Botânico da Reserva Florestal Adolpho Ducke, na zona norte de Manaus.
“Quando comecei a trabalhar a ideia da exposição ‘Peixe-Gente’ havia participação do Feliciano com muitas ilustrações. Quando começamos a discutir o novo espaço do Musa, no centro, a cultura indígena não era bem aceita. Diziam que não ia dar retorno para o Musa, não tinha visibilidade. Mas o trabalho do Feliciano era diferenciado, trazia uma literatura imaginária. A ideia era que, quando as pessoas entrassem no Musa, elas iriam conhecer a cultura Desana através do desenho e da contação da história, mas em uma exposição”, diz Jaime.
Repercussão: “filho dos desenhos dos sonhos”
A comunicadora indígena Renata Tupinambá, da Rádio Yandê, esteve em 2017 em São Gabriel da Cachoeira. Ela ministrou uma oficina para comunicadores indígenas e lembrou que os desenhos utilizados na oficina foram produzidos especialmente por Feliciano Lana. “É uma pessoa de saber. Um sonhador de memórias e que as comunicava por meio de seus desenhos sobre a vida indígena da sua região. Que as próximas gerações possam lembrar sempre de pessoas como ele e que tenhamos força para resistir ao extermínio e ao descaso de governantes”, diz Renata.
O antropólogo Henyo Barreto, da Universidade de Brasília (UnB), em sua rede social escreveu: “Marivelton Baré nos traz a devastadora notícia do passamento do seu Feliciano Lana, sábio Desana e uma das mais importantes referências para o diálogo intercultural no rio Negro, com o seu conhecimento, a sua literatura e a sua arte plástica, que inspiraram e ensinaram tantos colegas que com ele construíram laços de afeto e amizade – arte esta tratada com sensibilidade na tese/livro de Larissa Lacerda ‘Iconografias do Invisível’. Kenhiporã, o “filho dos desenhos dos sonhos”, agora foi habitar o mundo dos sonhos do qual sua vida e sua arte se nutriam”.
O antropólogo Renato Athias conheceu Feliciano Lana em 1974 e o viu pela última vez em fevereiro de 2019, quando ele esteve em São Gabriel da Cachoeira. Ao saber da morte do amigo, ele contou que “a notícia o deixou profundamente triste”.
Athias disse que, no último encontro, os dois estavam na porta Funai, em São Gabriel, e lembraram-se da época em que conheceu toda a família Lana, na comunidade São João. “Parecia que não havia passado o tempo. Uma sensação de estar sempre no mesmo tempo. A conversa girava em torno dos desenhos, de sua produção e sua relação como um tempo mitológico. Cada desenho mostrava uma narrativa. O texto dessa narrativa era construído pela vivência do cotidiano de Feliciano, de sua relação com as pessoas, com vida e de suas lembranças do tempo das malocas”, descreve o antropólogo.
Em um dos tantos reencontros, Renato Athias destaca um ocorrido em 2001, quando ele estava acompanhado de um jornalista do jornal The Spiegel, da Alemanha. “Conversamos muito e a curiosidade de Matthias Matussek, o jornalista, ia muito longe, e sempre querendo saber sobre as palavras transformadoras existentes em toda essa região. No dia seguinte, Matthias novamente me pediu para irmos juntos visitar o Feliciano, e lá fomos. Encontramos Feliciano em meio à sua produção artística e nos desenhos, experimentando os lápis cores em pastel que eu havia trazido para ele. Novamente, essas conversas sobre os desenhos, na realidade, não eram sobre os desenhos. Era sobre um conhecimento profundo sobre a vida, que as narrativas mitológicas interpretam o universo. Esse mundo que ela havia conhecido através de seu tio, Umusin Pãrõkumu (Firmiano), um importante Kumu e Baiá dos Kêhíriporã”, lembra Athias.
“Para mim, até hoje, quando eu vejo seus desenhos, eu escuto a sua voz me falando, contando os Kihti, as narrativas, tal como seu pai lhe falava, e eu lhe respondendo “uhum… tota ni” e, ele continuava a sua fala. Muitas das vezes incompreendidas, mas contendo um profundo saber acumulado de séculos. Tenho dez desenhos que ele fez para uma publicação que estou organizando. E ele me narrou todos os dez episódios dessa série. Eu quando quero escutá-lo vou olhar os seus desenhos”, diz o antropólogo.
O padre Justino Sarmento, antropólogo que conheceu desde a juventude Feliciano Lana, lembra que o ancião fez parte de uma geração que teve uma “legítima educação indígena”.
“O Feliciano Lana faz parte de uma geração que quando chegou aos internatos salesianos, tinha uma educação indígena baseada em valores e cultura sólidas. Ela representa uma passagem de uma geração que não teve contato com a educação, nos internatos salesianos: a dos nossos avós”, relata o padre.
“Foi uma geração com uma base muito estruturada. Tivemos uma convivência muito boa de conversas de consideração, porque os Tuyuka e os Desanos são como primos irmãos. Ali naquele espaço em Pari Cachoeira, tive a oportunidade de viver essa fase”, recorda Justino Sarmento.
O padre acrescenta que Feliciano Lana e seus contemporâneos fizeram parte de uma geração que começou a pensar na união e sustentabilidade das comunidades, no empreendedorismo indígena.
“Embora tendo estudado muito pouco, eles faziam essas ideias funcionarem. Eles também eram muito honestos. Isso funcionou enquanto eles estiverem a frente das organizações indígenas”, conta.
O padre Justino Sarmento, que é do povo Tuyuka e tem parentesco tradicional com Lana, falou que ambos tiveram a oportunidade de ter uma convivência de “consideração tradicional” no internato salesiano. (Colaborou Izabel Santos)