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Depois da Marcha Virtual: “endeusamento da ciência”? – Alfredo Wagner


Publicado em: Jornal da Ciência

“A despeito de tudo, parece estar se consolidando a noção de que a superação da pandemia encontra-se na pesquisa científica”, comenta o conselheiro da SBPC, Alfredo Wagner Berno de Almeida


Os efeitos da Marcha Virtual pela Ciência, realizada no dia 07 de maio de 2020, se fizeram sentir de maneira direta em polêmicas que marcaram a imprensa periódica e as mídias sociais imediatamente após o evento. Não obstante os resultados favoráveis mediante a mobilização intensa de associações científicas, afirmando a relevância da ciência na vida social, e da inexistência de qualquer refutação frontal, ocorreram algumas contestações indiretas, tangenciando as questões abordadas. Importa refletir aqui menos sobre a relevância delas do que sobre o seu propósito.

O que mais me chamou a atenção na manhã do dia 08 de maio foi que mais de uma dezena de sites reproduziram o manifesto de líderes religiosos agrupados na entidade Coalizão pelo Evangelho, datado de 04 de maio, mas apenas divulgado de maneira ampla imediatamente após a Marcha. O manifesto tece uma crítica ácida ao que classifica como “endeusamento da ciência no combate ao coronavírus”, além de apontar uma “crise de autoridade no país” e sublinhar conflitos dentro da própria comunidade científica e respectivas interpretações. (cf. Fabio Zanini, ”Lideres evangélicos criticam “endeusamento da ciência” na crise do coronavirus”. in Folhapress/Fabio Zanini 9/05/2020 às 8:34).

Testemunhamos a triste politização e endeusamento da ciência. Dentro da comunidade científica, que poderia e deveria se apresentar de forma mais objetiva, há conflitos de dados e interpretações sobre como tratar a pandemia”, afirma o texto, que tem o titulo “Pela Pacificação da Nação em Meio a Pandemia”. O manifesto é assinado por 17 lideres evangélicos de diferentes regiões do país, muitos dos quais representam diversas igrejas em seus estados.”(Zanini,ibid).

Mediante esta formulação observa-se que há uma prescrição normativa que idealmente definiria o que os religiosos entendem como objetividade da “ciência”. Em contraposição nunca é demais reiterar que não existe ciência sem debate, sem perguntas, sem interrogações, sem polêmicas e sem interpretações diferentes e em constante oposição. A ciência sintetizaria uma luta de classificações, conceitos e abordagens teóricas. Nesta ordem, a ciência não é una, indivisa, monolítica e um ato de imposição divina da verdade. Não é a palavra de uma divindade tornada dogma e reproduzida acriticamente. Antes, consiste na capacidade criativa construída historicamente pelas relações entre os homens, que os impele à compreensão detida de diferentes fenômenos sociais e físico-químicos, evidenciando o fato de não serem robôs ou agentes passivos de uma repetição infinita das mesmas interpretações e suas variantes, mas1-Os efeitos da Marcha Virtual pela Ciência, realizada no dia 07 de maio de 2020, se fizeram sentir de maneira direta em polêmicas que marcaram a imprensa periódica e as mídias sociais imediatamente após o evento. Não obstante os resultados favoráveis mediante a mobilização intensa de associações científicas, afirmando a relevância da ciência na vida social, e da inexistência de qualquer refutação frontal, ocorreram algumas contestações indiretas, tangenciando as questões abordadas. Importa refletir aqui menos sobre a relevância delas do que sobre o seu propósito. desenvolverem uma criatividade incessante e dinâmica numa ação investigativa e sistemática, cada vez mais autônoma da estruturas de poder. Sem indagações sucessivas, sem debates e interrogações por eles interpostas, não há ciência, já asseverava o físico G. Bachelard, em 1939. Os objetos da ciência são construídos através de perguntas e podem não levar necessariamente a uma e somente uma resposta, mas a várias respostas, que podem ser transformadas no tempo e revelam pontos de dissenção e outros tantos de confluência, ou seja, um dissenso no consenso. A pandemia é vista, deste modo, pelos religiosos como agravando divergências, provocando conflitos, que desfazem alianças politicas, em torno de medidas antagônicas de “isolamento social” e de “negativismo” dos efeitos pertinentes da disseminação do vírus. Depreendem daí o que chamam de “crise da autoridade política” e delineiam uma posição de pretensão mediadora numa situação que denominam de “pacificação”, que é um termo tomado ao léxico militar e circunstancialmente incorporado pela retórica religiosa.

No mesmo 8 de maio, um dia após a Marcha pela Ciência, teve ampla repercussão a alocução de uma autoridade religiosa, um pastor que dirige uma igreja de dimensão internacional, prometendo publicamente “a cura do novo coronavirus com uma semente” por ele distribuída aos fiéis. Esta iniciativa da autoridade religiosa expressa a competição ou a disputa pelo poder de cura através de uma “semente com uma inscrição religiosa”, ou seja, uma solução não-simbólica equivalente a um “fármaco”, que conteria a força de transladar as impurezas. Sua alocução, afirmando explicitamente que a cura estaria na religião e não na ciência, teria sido feita em 05 de maio, mas só teve repercussão após a Marcha e também em virtude de uma denúncia de procurador do Ministério Público de São Paulo por uma “suposta prática de estelionato, após o pastor ter prometido uma falsa cura ao coronavírus por meio de sementes que eram vendidas por ele.” (cf. “Procuradoria quer investigar V. S. por estelionato” – UOL 08/05/2020; e também “Procuradoria pode investigar pastor V.S. por estelionato”- O Estado de São Paulo. 09/05/2).

Quase dois meses antes da Marcha, em meados de março, havia um principio operativo sugerido explicitamente nas falas do chefe do executivo, que não apenas minimizava os efeitos do COVID-19, mas desdenhava as medidas de “isolamento social”, que, segundo ele, não seriam necessárias, porque se tratava de uma “gripezinha”, que o “povo brasileiro poderia enfrentá-la” e que mortes, que porventura houvessem, seriam “naturais”, incidindo sobre os mais idosos e vulneráveis. Prevalecia uma noção oficiosa de que a fé e a disposição atlética seriam os ingredientes básicos para enfrentar o vírus. Mesmo depois de declarada a pandemia global pela OMS, em 11 de março de 2020, demonstrando se tratar de uma doença infecciosa ou enfermidade epidêmica amplamente disseminada, esta visão oficiosa continuou a ser repetida à larga. Nos desvãos das entrelinhas uma pressuposição de que a enfermidade atingiria “os mais idosos” e os ímpios ou os que se comprazem com o mal, os pecadores, os pagão e os gentios, isto é, politeístas, idólatras, não batizados que estariam num estágio histórico considerado anterior à cristianização, além daqueles que não praticam ou praticaram esportes. Alardeava-se uma espécie de darwinismo social ancorado na seleção por critérios forjados na religião e no espírito espartano, na fé e na força muscular ou atlética.

Comentaristas e intérpretes dos efeitos da pandemia afirmavam então, nestas primeiras semanas, o seguinte: se vive um momento em que o campo religioso tende a se fortalecer e em que a religião estaria em alta uma vez que a superação da pandemia estaria nela. Justificavam tal afirmativa em razão de temores, medos e pânicos que levam à busca de bens da salvação, à afirmação da fé e do poder de divindades e aos exemplos do martirológio, transformando as listas de vítimas da covid-19 em listas de mártires em consonância com narrativas bíblicas catastrofistas. Nestas interpretações falava-se, concomitantemente, em “punição dos pecadores” ou no principio de seleção inspirado no mencionado darwinismo social, qual seja, os atléticos e os que tem fé e a proclamam não seriam atingidos. E em decorrência traçam um cenário de tragédias, em que se multiplicam os casos de crise aguda de ansiedade e aumentam os níveis de enfermidades psicossomáticas e de adoecimento mental e de depressão. Enfatizam ainda o abuso de drogas e álcool, de estresses e de suicídios e atitudes desesperadas que desenham um quadro complexo de saúde mental. Desnecessário salientar que tal visão fundamentalista, que simplifica estas enfermidades, contraria os estudos psicanalíticos e as pesquisas acadêmicas em psicologia social.

Sob o ângulo desta ortodoxia os efeitos da pandemia revelavam uma confluência de múltiplas crises emocionais e coletivas, de isolamentos, de incertezas, de traumas psicológicos generalizados e distúrbios mentais. Traziam à tona também os radicalismos religiosos, em que ultraortodoxos ignoram medidas de restrição, não aceitam as recomendações da OMS, como se a fé pudesse blindá-los ou curá-los de qualquer contágio. Uma visão em tudo messiânica conjugada com a visão oficiosa de desdenhar o “isolamento social” praticada pelo centro de poder politico. Assiste-se a uma temerária junção destas duas visões conjuminadas num poder que idealmente controlaria “o céu e a terra”, “o imaterial e o material”, centrado na figura de um personagem investido de características salvacionistas.

Em pouquíssimas semanas esta ilusão começou a ser abalada, a sofrer contestações de várias ordens, seja no campo politico, cindindo alianças partidárias, e nos meios de comunicação, nas mídias sociais e congêneres, seja dos que nas ruas, nos ambientes de trabalho, nos ambulatórios e hospitais ou na intimidade doméstica percebem, em escala crescente, que o enfrentamento da pandemia demanda atendimento hospitalar e assistência com profissionais de pesquisa médico-cientifica e/ou com experiência técnica cotidiana em atendimento especializado, bem como agentes de saúde com atividades correlatas.

A partir de embates políticos em torno das medidas de enfrentamento e notadamente do chamado “isolamento social” o empirismo ingênuo – que cultiva falsas oposições entre “a preservação da vida e a economia” ou entre “ciência e fé”-, foi sendo derrotado e junto com ele os partidários radicais da “cura pela fé”, os fundamentalistas para os quais a “ciência não cura, somente a fé pode curar” ou os fatalistas oficiosos falando da “morte natural dos idosos”. Como é característico dos fundamentalismos, nestas sugestões autoritárias de seleção, houve até quem propusesse “campos de concentração” para manter os enfermos, supostamente idosos e infectados. As formulações confusas e as condutas abstrusas, intrincadas, que não possuem logica nem fundamento racional, disseminadas pelo chefe do executivo, que continuam a ser propagadas na vida social, perdem gradativamente credibilidade. Uma percepção popular de incongruência absoluta destas formulações, repetidas sucessivas vezes, propiciou um repertório vasto de absurdos e de insensibilidades, criando condições de possibilidade para questionamentos mais gerais. Aumentaram em decorrência as dúvidas e as contestações aos esquemas explicativos abstrusos do chefe do executivo. Foi tamanho o desdém do executivo e a sua crença nesta vertente religiosa fundamentalista supostamente curadora da enfermidade, que a Presidência da República não definiu uma política nacional de enfrentamento, privilegiou tão somente medidas econômicas e repudiou o “isolamento social”, abrindo disputas no campo de poder e deixando vazio o lugar da intervenção politica na saúde, que foi ocupado por governadores e prefeitos.

O fato de autoridades religiosas estarem coladas em demasia à figura do chefe do executivo estaria trazendo apreensões aos templos dos ultraortodoxos e dos fundamentalistas. Algumas delas de difícil reversão. Recorde-se que o executivo favoreceu igrejas, mantendo templos abertos durante a pandemia, numa exceção questionável no que tange ao principio de evitar as aglomerações. Numa mesma direção, o chefe do executivo fez diversos pronunciamentos em templos, cujos púlpitos e balcões foram transformados numa modalidade de palanque. A politização da sacralidade de púlpitos e oratórios tem efeitos graves. O descenso e a ridicularização crescente das teorias estapafúrdias e abstrusas sobre a pandemia, alardeadas pelo chefe do executivo refletem, assim, numa continuada desautorização dos próprios fundamentalistas. O descrédito avançou e igrejas se omitiram e não estão conseguindo se descolar desta imagem que nega o isolamento social, que menospreza os efeitos da propagação do vírus e que implicitamente endossa o darwinismo social que associa fé com espirito espartano e atrela a sobrevivência aos “mais capazes”, os supostos “jovens” e “adultos”, fortes de corpo e de alma.

Igrejas que imaginavam deter de maneira absoluta o monopólio do controle dos bens da salvação, fortalecido neste momento pela aliança da sua religião com a politica, entendida como centro de poder, estão sentindo estes mecanismos de controle lhes serem gradativa e circunstancialmente arrancados. Sem se descolarem da imagem do poder politico estão pagando caro esta adesão às teorias abstrusas no momento da pandemia. Caro em vários sentidos. Não conseguem se dissociar do poder central e repetem continuamente a crítica à ciência, tal como sucede com o manifesto propagado em 8 de maio de 2020.

Um dos resultados mais palpáveis desta situação contingente aponta para uma transformação sobre a qual teremos que refletir com mais discernimento e de maneira mais detida, qual seja: os bens da salvação não se voltam mais tão somente para a religião. Há uma perda do monopólio no exercício de seu controle e a ciência emerge num quadro de maior autonomia face ao poder governamental. A refutação crítica ao “endeusamento da ciência” evidencia que a ciência não é sacralizada e encontra-se aberta a interrogações e questionamentos. Certamente a “fé não costuma falhar”, como canta Gilberto Gil, mas as pessoas estão passando a aceitar a eficácia do conhecimento cientifico, apagando, inclusive, circunstancialmente a falsa oposição dos ultraordotoxos e fundamentalistas entre religião e ciência. O enfrentamento da pandemia está criando condições de possibilidade para uma reafirmação do conhecimento cientifico numa conjuntura em que o governo federal, encastelado nos ministérios, ataca as universidades e os produtores de conhecimento cientifico, tentando desmontar laboratórios e institutos de pesquisa com cortes orçamentários profundos no orçamento para ciência e tecnologia, com redução de bolsas de pesquisa e com restrições orçamentárias jamais registradas em nossa história republicana. A despeito de tudo, parece estar se consolidando a noção de que a superação da pandemia encontra-se na pesquisa científica. Vivemos, portanto, um dos mais recentes efeitos da pandemia no Brasil marcado por um processo de reafirmação ou de legitimação ampla junto à sociedade da autoridade da ciência e das universidades.

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