No dia 15 de maio de 2019, no território quilombola da comunidade Nossa Senhora do Bom Remédio, localidade do Assacu no município de Abaetetuba, aconteceu reunião preparatória de oficina de mapeamento do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia na residência da senhora Márcia Trindade. A reunião preparatória que contou com presença de 29 pessoas, está inserida nas atividades de pesquisa do Projeto Estratégias de Desenvolvimento, Mineração e Desigualdades: Cartografia Social dos Conflitos que atingem Povos e Comunidades Tradicionais na Amazônia e no Cerrado- CLUA.
Desde o ano 2016, o Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, em parceria com a Faculdade de Educação do Campo, Campus Universitário de Abaetetuba da UFPA, tem realizado trabalhos de pesquisa com comunidades ribeirinhas nas ilhas de Abaetetuba e áreas adjacentes, como a Ponta do Malato, na ilha de Marajó, por encontrarem-se em situação de vulnerabilidade, no que diz respeito aos efeitos dos megaempreendimentos, que tem se instalado na região. Especificamente mapeia-se aquelas afetadas por megaempreendimentos portuários, como as Ilhas Capim e Xingu, onde encontra-se o território quilombola da comunidade Nossa do Bom Remédio na localidade denominada Assacu.
Os presentes organizaram uma roda de conversa, na qual os moradores expuseram sua preocupação com a chegada do megaempreendimento portuário, o Terminal de Uso Privado-TUP, de interesse da empresa norte americana Cargill Agrícola S.A, a ser construído nas imediações onde se localiza o território da comunidade quilombola Nossa Senhora do Bom Remédio, esta, certificada pela Fundação Cultural Palmares e delimitada pelo Instituto de Terras do Pará-ITERPA, desde 2005. No mesmo ano também foi criado o Projeto de Assentamento Agroextrativista, o PAE Santo Afonso na Ilha Xingu, bem como o PAE Santo Antonio II na Ilha Capim, resultado da mobilização das comunidades e associações ribeirinhas, para regularizar as terras de várzeas dessa parte do amazônico.
Com a construção do TUP, as famílias perdem território, áreas de pesca, cultivos e o acesso livre ao lago do Piri, que contribui para o sustento alimentar de diversas familias distribuídas em 16 comunidades das ilhas Capim, Xingu, Urubuéua, Caripetuba e do território quilombola do Assacu, a comunidade Nossa Senhora do Bom Remédio. No entanto, existe na portaria de criação do assentamento, e um Plano de Utilização com as regras de uso do PAE, o qual foi publicado no Diário Oficial da União, no dia 01 de outubro de 2007. De acordo com Elielson Silva, ex-superintendente do INCRA-SR-1, Belém, “esse Plano é como se fosse um estatuto comunitário que se define, se delimita ao que chamaram de ‘recursos naturais’ e delimita o que pode e o que não pode na área de uso do PAE.
Ainda conforme esse estatuto, alguns itens forma destacados por Elielson Silva: o que trata de “intervenções na pecuária”, o item 39, que diz: “fica proibida a criação de animais de grande porte, bovinos e bubalinos”, exceção feita aos senhores que a época da criação possuíam o total de 37 cabeças de gado, sem causar prejuízo ou danos aos vizinhos. Todavia foi vetada “a ampliação do rebanho da pastagem”. Destacou também o Item 39, que trata da intervenção no subsolo, proibindo a mineração, e o Item 43, no qual se lê: “Fica proibido a instalação de empreendimentos industriais” e por fim, o Item 49 que diz: “A invasão ou o uso indevido dos recursos naturais da área por pessoas estranhas ao PAE Santo Afonso, será penalizado mediante sua expulsão da área, cabendo ao infrator indenizar todos os danos causados e pagar as muitas estabelecidas na legislação ambiental vigente”. Um ponto importante a destacar é que os beneficiários desta política pública, que compõem mais de 20 PAEs, são povos e comunidades tradicionais, que vivem ali há gerações. A construção do grande empreendimento, desconsidera essa realidade e assim, do ponto de vista fundiário, nota-se uma sobreposição de terras e territórios na área onde se pretende construir o TUP. O mapa preliminar evidencia situações que vão desde sobreposição a alteração de dispositivos jurídicos para beneficiar a territorialização de grupos econômicos nessa parte da várzea banhada pelo rio Tocantins, que configuram casos de violação do direito humano ao meio ambiente.
Na ocasião estiveram presentes lideranças locais: o coordenador da ARQUIA (Associação dos Remanescentes de Quilombo das Ilhas de Abaetetuba), Edilson Costa e demais membros da Associação, bem como representantes da Cáritas e da Pastoral da Saúde, que na ocasião desenvolvia atividades preparatórias do encontro de mulheres, membros desse seguimento. A equipe de pesquisa foi ampliada com a contribuição do doutorando do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, Elielson Silva, que abordou o tema “Direitos Territoriais dos Povos e Comunidades Tradicionais no Baixo Tocantins”.
A vida no povoado, segundo os quilombolas e ribeirinhos presentes à reunião, já foi muito tranquila, mas atualmente eles vivem atormentados com a ameaça da chegada do grande empreendimento portuário, o qual põe em risco as questões habitacionais, as práticas culturais e de subsistência, bem como a saúde e alimentação, que já sofrem os efeitos de outros empreendimentos portuários da vizinha Vila do Conde, em Barcarena, que atingem diretamente a pesca e o extrativismo. No que diz respeito ao empreendimento da Cargill Agrícola S.A, já atinge os moradores da comunidade São José, antes mesmo de ser construído, com o cercamento construído pela empresa nas imediações das moradias, o qual se estende até o lago Piri, um reservatório de recursos naturais, que alimenta as 16 comunidades tradicionais que vivem em suas cercanias.
Além disso, os comunitários destacaram o assédio por parte de pesquisadores contratados pela empresa que irá construir o TUP. A agente comunitária de Saúde, Márcia Trindade, relatou: “muita gente, muitos grupos vêm aqui dizendo que são pesquisadores, inclusive veio um que até sabia o meu nome e quando foi na reunião, eu vi, tinha minha foto no lado de gente da empresa”. Ao se referir a importância do mapeamento, ela diz: “é importante a gente conhecer o nosso território, porque assim a gente sabe como se defender. E nós não estamos parados, não. Já teve várias vezes “Grito das Águas” e nós estamos lá; quando tem reunião Câmara, nós estamos lá; pode até não resolver, mas o nosso grito nós deixamos lá e nós estamos aqui pra lutar; não vamos deixar ninguém invadir nosso território, sem que a gente faça alguma coisa, porque nós somos filhos dessa terra”.
Sobre a situação das terras de negros em Abaetetuba, o senhor Edilson Costa diz, “a discriminação sempre foi grande pra nós. Na primeira Lei de Cotas nós não pudemos entrar porque não tínhamos terra, era proibido negra ter terra e ficávamos fora do sistema, como sempre estivemos, mas nós sempre tivemos, o que acontece é que aquela lei da escravatura nos deu ‘liberdade’, mas não dignidade e nós passamos de dominados para excluídos. Mas por conta de muita luta estamos aqui hoje. Temos uma comunidade titulada, regularizada e a nossa finalidade aqui é nos unir, se juntar para resistir as ameaças que estão aí”. E acrescentou: “Então a gente está aqui com essa intenção e a finalidade nós trabalhar com o mapa, com a cartografia é porque nós não temos um mapa nosso específico, detalhado, então esse trabalho que vamos fazer aqui é de suma importância, porque vai ser uma ferramenta a mais que nós vamos ter.”
Com o apoio e compreensão dos membros das comunidades presentes, ao final da reunião foi agendado novo encontro, para concretizar as atividades de elaboração de croquis, georreferenciamento, entrevistas e registros fotográficos.
Texto produzido por: Eliana Teles e Marcelle Di Paula Lobato
Fotografia: Eliana Teles e Elielson Pereira da Silva.