Fonte: uol.com.br/ecoa
Um povo quase desapareceu por completo, e não porque todos morreram ou sumiram do mapa — pelo contrário, continuavam com o coração pulsando em três países diferentes: Brasil, Peru e Colômbia. De nascença, sangue e espírito eram todos e todas kokamas, uma das 305 etnias indígenas que sobrevivem no Brasil, mas com o tempo passaram a se identificar de outras formas: alguns diziam-se parte de diferentes etnias, outros nem indígenas se consideravam mais. Foram dados como desaparecidos porque muitos precisaram deixar de ser ou esconder o que eram.
Como conta a doutora em linguística Altaci Corrêa Rubim, “foram tempos em que tinha muito preconceito e muita vergonha de se dizer kokama”. Por imposição religiosa e do Estado, os kokamas, desde o primeiro contato com o homem branco, foram obrigados a desaparecer aos poucos.
Perderam os nomes indígenas, deixaram de realizar muitos costumes tradicionais da etnia e tiveram que esquecer toda e qualquer palavra do idioma. São gerações de pais e mães que, proibidos de falar a própria língua materna, não puderam repassar as palavras do jeito que conheciam para os filhos e filhas.
Só nas últimas décadas a situação começou a mudar. A língua kokama, que permanecia adormecida nas lembranças dos falantes mais velhos da etnia, no final da década de 1980 começou a acordar na forma de palavras escritas em novos livros didáticos e faladas em gravações em áudio que narram a história e a cultura desse povo antes proibido de contá-las em voz alta.
“Se não falar português, não come”
No Brasil, segundo Altaci, são cerca de 20 mil pessoas da etnia que vivem na região do Alto e Médio Solimões e na capital Manaus (AM). Desse total em solo brasileiro, apenas 20 têm a língua kokama como a principal — o que a levou para a lista das 190 línguas indígenas que correm perigo de extinção, organizada pela Unesco, em 2010.
A história que Altaci conta por telefone ilustra o motivo do quase desaparecimento desse idioma e, consequentemente, dessa etnia. Filha de um homem kokama com uma mulher ticuna, ela narra os momentos que seguiram a morte da avó materna. O pai tinha apenas dez anos. Certo dia, brincando no cais com alguns amigos, viu um missionário religioso se aproximar oferecendo um chocolate e uma proposta: para conseguir o doce, as crianças só precisariam acompanhá-lo. Tendo aceitado o chocolate, o pai de Altaci foi sequestrado e mandado a um abrigo, onde ficou até os 18 anos, quando conseguiu fugir do local.
“Aconteceu com muitas crianças kokamas isso, muitos foram levados para orfanatos. Chegando lá, ouviram ameaças. A principal era: se não falar português, não come”, relata Altaci. As situações vividas pelo pai e tantas outras crianças e jovens kokamas criou uma cicatriz profunda, um trauma que os fez assumir a língua portuguesa como idioma principal. Nas lembranças de criança que Altaci revira durante essa entrevista, ela retira a forma como as vezes escutava os tios-avós falando como se fossem abelhas.
Cresceu e aprendeu que o zumbido que Tio Pedro e Tia Marcina faziam ao conversarem entre si era, na verdade, o barulho que algumas palavras na língua kokama faziam. As abelhas eram o som parecido com “dza” que palavras iniciadas com “ÿ”, como “yawara (cachorro)” fazem em kokama.
“Às vezes a gente pegava meu pai falando assim também. Ele ia para casa da minha tia Marcina falar em kokama com ela sem contar pra ninguém. Quando a gente pegava ele falando assim, ele parava de falar”, diz a doutora em linguística. Em uma espécie de segredo coletivo que ficou muito bem guardado, alguns kokamas ficaram sabendo só depois de adultos que eram indígenas. A professora Jardeline dos Santos Costa, por exemplo, relata que só descobriu que era indígena quando tinha 17 anos.
“Um dia meus pais vieram falar pra mim sobre a nossa origem. Minha mãe contou que por muito tempo era proibido falar disso. Os padres proibiam, porque as crianças tinham que aprender a língua portuguesa. Ela ficou envergonhada e também com medo de sofrer represália na época. E nesse dia ela veio falar que não ia mais se esconder, não ia esconder isso dos filhos porque nós precisamos saber quem éramos de verdade.”
A volta de uma nação “extinta”
Foi um acidente com barco cheio de crianças que serviu de estopim para mudar o rumo dessa história de vez. Com as perseguições que sofriam no Alto Solimões, os kokamas precisaram se esconder no meio dos ticunas. Muitos casaram com pessoas dessa etnia e passaram a se apresentar como tal. Altaci conta que foi frequentando reuniões e encontros desse povo que os kokamas começaram a aprender a se organizar politicamente.
Mas, para conseguirem estudar, a única opção era frequentar uma escola ticuna que ficava do outro lado do rio. Era preciso cruzar a água remando em uma canoa. Certo dia, uma forte chuva caiu e as crianças quase morreram na travessia. Sabendo disso, seu Antônio Samias, uma grande liderança kokama, decidiu que era hora de seu povo ter uma escola própria.
Em um encontro com agentes da Funai (Fundação Nacional do Índio), ele fez o pedido pela instituição de ensino. “Só que o agente não sabia dos kokamas. Ele perguntou: ‘Seu Samias, mas vocês não são ticunas?’. Quando ouviu a resposta de que aquele povo era kokama, ele ficou surpreso”, conta Altaci. O encontro terminou com o técnico instruindo os indígenas a procurarem a Funai para que todos pudessem tirar o Rani (Registro Administrativo de Nascimento de Indígena).
“Aí formou-se uma assembleia reunindo toda comunidade para falar que todos que estavam ali não eram ticunas, eram kokamas. Muitos não aceitaram. Muitos saíram da comunidade depois disso. Por isso, uma frase que ficou marcada para a gente foi a do seu Samias, que falou ‘eu sou kokama no céu, na Terra e no inferno’ “, diz Altaci.
“O que falta para eu ser índio?!”
Mesmo a ida até a Funai para conseguir o documento não foi fácil. Foram três tentativas de Sebastião Castilho Gomes, outra liderança, para conseguir o reconhecimento das famílias kokamas. Na terceira, já irritado com as negativas do órgão em recebê-los, tomou a atitude de arrancar todas suas roupas e esbravejar em alto e bom som: “Eu quero saber o que falta para eu ser índio?!”.
Saíram de lá e organizaram uma reunião de “rebatizamento”, já que durante os anos em que a pressão religiosa se fez presente contra esse povo, muitos foram as vezes que nomes tipicamente kokamas foram substituídos em cartórios.
Depois disso, professores de linguística da UnB (Universidade de Brasília) e kokamas passaram a visitar comunidades no Alto Solimões para documentar por meio de gravações em áudio conversas com os mais velhos da etnia.
Covid matou 75 dos 95 anciãos kokamas
Os materiais em que a professora Jardeline se baseia para criar as aulas e ensinar o idioma são fruto do trabalho de revitalização da língua. Em cada território, como conta a professora, existe uma metodologia diferente. Materiais didáticos com histórias, grafismos e fotos foram criados para servir de guia nas salas de aulas, dicionários foram estruturados e existe até um aplicativo de tradução da língua para facilitar o processo de aprendizagem.
Já as histórias passadas de forma oral pelos mais velhos são registradas por escrito e ganham novos destinos, como a criação de livros e jogos. Além disso, muitas oficinas e palestras são dadas com frequência, especialmente entre kokamas que migraram para Manaus e lá estabeleceram uma forte comunidade em prol da recuperação da língua na aldeia Nova Esperança Kokama.
Mas tanto Altaci quanto Jardeline relembram que esse é um processo que leva tempo porque mesmo os professores kokamas ainda estão aprendendo sobre o idioma. Ainda assim, acreditam que é por meio da língua que a história e cultura adormecida vão despertando.
“Na maioria dos casos é o linguista que convence os povos que a língua está se perdendo, né? No nosso foi diferente. Ficamos no limite de perder e acordamos a tempo, com todos juntos nessa retomada, cada um na sua área fazendo de diferentes maneiras. Se nós acordássemos só hoje, eu nem consigo dizer o que poderia acontecer. A perda seria gigantesca porque só no ano passado, com a covid, 75 dos 95 anciãos kokamas se foram”, diz Altaci.
Nós temos uma língua que ainda corre perigo de extinção, mas que possui um grande potencial para reverter isso. Quando você pensa em uma educação kokama, fala-se ‘ya eran’, que é ensinar a cosmovisão a partir do coração. Se a gente perde [a língua], se isso desaparece, deixamos de ser kokamas. Para nós, a língua que falamos é a própria vida.
Altaci Corrêa Rubim, doutora em linguística