Camila do Valle (UFRRJ)
Um corpo foi recortado da paisagem. Eduardo Lourenço foi recortado da paisagem. Uma lacuna real na imaginação de um país. Uma lacuna, pois, no real. Tomamos, assim, a imaginação de um país como uma força política. Ele tratava de imaginá-lo, a este país onde nasceu, cresceu e viveu até logo após sua formatura na Universidade de Coimbra – onde foi aluno de Joaquim de Carvalho e Sílvio Lima, sempre lembrados por ele -, a partir das pistas deixadas por muitos produtores intelectuais portugueses, de diversos domínios da criação. Da música, das artes visuais, da crítica literária, da filosofia. Todavia, sobretudo, na maior parte de seus textos, eram os autores da literatura portuguesa que estavam presentes. Em seus ensaios, já, há décadas, considerados clássicos nos cursos de Letras, as pistas a serem decifradas vinham a partir das pegadas, dos índices remissivos deixados por Camões, Fernando Pessoa e Antero de Quental. Mas também por Eça de Queiroz e pela chamada Geração de 70 ou geração coimbrã. Sem nos esquecermos de sua interpretação originalíssima do neorrealismo português, interpretação pela qual nutria simpatia maior já nos anos finais de sua vida, segundo declarou durante as entrevistas que fiz para o pós doutoramento e quando da publicação de um dos volumes de suas obras pela Fundação Calouste Gulbenkian. Foi, sempre, ininterruptamente, um grande leitor de Portugal: como livro que lia e escrevia a um só tempo. Nos últimos anos, esses em que ele voltou, já aos 90 anos de idade, a viver em Portugal, as vozes femininas da literatura portuguesa lhe interessavam mais: Lídia Jorge, Hélia Correia e, para minha surpresa, quando pedi que fizesse uma declaração sobre alguma escritora portuguesa, escolheu Maria Judite de Carvalho – e atribuiu à expressiva vaidade masculina das conversas dos salões de que fazia parte o marido, também escritor, Urbano Tavares Rodrigues, a pouca atenção dada a ela. E me recomendou, comovido, o estudo minucioso dos textos dessa escritora, como se fosse o cuidado com uma dobradiça interna que fazia uma porta se mover, ou o cuidado com a limpeza de uma janela, através da qual se vislumbraria, claramente, dadas paisagens internas de um país. As metáforas são dele. Ressentiu-se de não lhe ter dedicado, ainda, maiores estudos. Declaração dada aos 95 anos, com alguma esperança no horizonte e uma reclamação de que lhe chegavam muitos textos para prefaciar, mas a sorte não o havia encontrado de que algum editor lhe enviasse um pedido para prefaciar um livro dela.
Um corpo foi recortado da paisagem. No entanto, para onde quer que se olhasse nos jornais, na mídia portuguesa, neste último mês de dezembro deste ano pandêmico, lá estava o nome desse corpo, seu semblante, traços de sua trajetória e tentativas de resgatá-lo desse lugar de ausência, que, nos resta dizer, parece que jamais será o seu na História de Portugal. Foi onipresente não só em todos os veículos de comunicação. O Estado português declarou luto por seu vivaz Conselheiro, cargo que ocupava na Presidência de Portugal e na Fundação Calouste Gulbenkian – neste segundo posto, a convite de Emílio Rui Vilar, e vários anos antes que o Estado português lhe fizesse este convite. Muitíssimos escritores, os mais variados produtores intelectuais portugueses, lhe prestaram homenagem. A vastidão da paisagem pela qual se interessou este corpo enquanto vivo vai da relação entre os militares e o poder, o tema do fascismo em Portugal, do colonialismo à literatura, à pintura e à música. Sem jamais abdicar da leitura da filosofia e da cotidianeidade política dos assuntos dos jornais. E de sua observação ao tempo muito presente e suas vicissitudes. Tampouco jamais abdicou do lugar de ensaísta que reivindicou para si. Foi através desse gênero esquivo, o ensaio, gênero tão pouco usual quanto pouco classificável, que se firmou na constelação dos mais importantes pensadores e escritores de Portugal. Filiou-se, assim, a um gênero textual que segue uma tradição que tem em Michel de Montaigne um de seus nada ortodoxos fundadores. Heterodoxia é, justamente, o título do primeiro livro de Eduardo Lourenço. Firmou-se numa constelação de pensadores, não só portugueses, a bem da verdade. Inúmeros, entre seus textos, saíram publicados em francês, primeiramente, ou somente em francês. Língua na qual deu a maior parte de suas aulas ao longo da vida, tendo sido professor universitário por décadas na França, depois de uma passagem por Heidelberg, Alemanha, e pelo Brasil, na Universidade Federal da Bahia – nesta, por apenas um ano: passagem esta que lhe rendeu amizades, mas, também, uma inimizade honorífica, por assim dizer, e que ele sempre fez questão de declarar, por toda a vida. Das amizades na Bahia, citava, com alegria, um rapaz que havia sido seu aluno e que, anos mais tarde, o convidou para padrinho de seu casamento com Helena Ignez: Glauber Rocha. Foi este ex aluno que lhe deu de presente o livro através do qual dizia ter encontrado o que ele considerava ser a chave de sua leitura do Brasil, o Grande Sertão: Veredas. Dizia, amiúde, de fato, em lugar de Brasil: “o país de Guimarães Rosa”. Não como quem reduzia a imagem de um país, mas como quem alargava suas vistas sobre os muitos sertões que aqui se avizinham, muito para além do litoral, embora sempre fizesse questão de relativizar seu conhecimento sobre a realidade do lado de cá do Atlântico. E relatava, emocionado, a iniciação do também amigo Jorge Amado no candomblé. Esta visita a um terreiro na Bahia era recorrentemente lembrada com o acompanhamento de uma sensação física que ele fazia questão de mencionar: tendo se sentido tonto durante a cerimônia no terreiro, precisou sair do recinto para buscar ar, pois pensou que desmaiaria. Ainda no momento do relato, feito a mim e a duas outras pesquisadoras, em 2015, décadas depois – as professoras eram Cynthia Carvalho Martins (UEMA) e Verônica Prudente (UFRR) -, seguia dizendo que perpassava seu corpo a sensação dessa tontura.
Pois foi esse corpo, muito vivo, que foi recortado da paisagem no último dia 01 de dezembro. Pela data, a primeira coisa que me veio à lembrança, forçosamente, em se tratando de quem era, foi a data de falecimento de Fernando Pessoa, tão lido e interpretado por ele, poeta ao qual dedicou tantos estudos, como Fernando, rei da nossa Baviera ou Pessoa revisitado. Incontornáveis, caso alguém se aventure a estudar Fernando Pessoa. Ainda que descubram mais uma centena de heterônimos, os estudos lourencianos nesse capítulo seguirão reveladores, assim como aqueles de autoria daquela que ele chamava, carinhosamente, de sua madrinha: Cleonice Berardinelli, de quem fui orientanda de doutorado há vinte anos. Apesar disso, cheguei a Eduardo Lourenço vários anos antes dessa orientação. Nos anos 90, pelas palavras do professor titular de Literatura Portuguesa da Universidade Federal de Juiz de Fora, também poeta e romancista, Edimilson de Almeida Pereira, em aulas onde a pedra fundamental para compreender Portugal – e a poesia portuguesa como sua alma mater – era o Labirinto da saudade, talvez o título de Eduardo Lourenço mais conhecido. Pois Fernando Pessoa morreu em um 30 de novembro, em 1935. E pus-me a meditar o que teriam sido as reflexões de Lourenço na véspera do que viria a ser seu próprio falecimento, sendo aquela a data de falecimento do poeta a quem mais textos dedicou em vida. Aquando da ocasião do falecimento do poeta da heteronímia, Miguel Torga lhe dedicou essas linhas em seu diário: “Morreu Fernando Pessoa. Mal acabei de ler a notícia, fechei a porta do consultório e meti-me por montes a cabo. Fui chorar com os pinheiros e com as fragas a morte do nosso maior poeta de hoje, que Portugal viu passar num caixão para a eternidade sem ao menos perguntar quem era” (TORGA, Miguel. Diário I, pág. 19). À diferença do poeta de Mensagem, foram muitos, entre os produtores intelectuais de Portugal, aqueles que se perguntavam, sopesavam, e tentavam dimensionar, publicamente, que ausência era essa, tão profundamente sentida já desde o primeiro momento na comunidade interpretativa de leitores e intérpretes de Portugal.
Eduardo Lourenço foi recortado da paisagem. Recebi a notícia, mais esse triste recado do mundo convulsionado por tantas razões que a pandemia só faz sublinhar, advindo da voz da Professora Dra. Isabel Pires de Lima, ex ministra da cultura em Portugal, estudiosa de Eça de Queiroz, Ferreira de Castro e Óscar Lopes, vice presidenta da Fundação Serralves, e que foi supervisora de meu pós doutorado em Literatura Comparada na Universidade do Porto, entre 2018 e 2019, justamente tematizando a trajetória intelectual do ensaísta em questão. Triste, com a voz em tom grave, pouco usual em sua comunicação, ela me telefonou logo bem cedo na manhã do 01 de dezembro. Fez-me saber da ausência que eu sentiria para todo o sempre. Pensei imediatamente: ontem foi o dia de falecimento de Fernando Pessoa. Mais tarde, dei por mim: dia 01 de dezembro era, também, a data de falecimento de sua esposa da vida inteira, Annie Salomon, francesa, professora de Literatura Latino americana da Universidade em Nice, especialista, sobretudo, em literatura mexicana. Ela antecedeu em 7 anos sua partida. Estiveram juntos por cerca de 5 décadas. Eram dois dias seguidos sob o signo de Thanatos para o ensaísta português: o autor mais estudado, falecido em 30 de novembro de 1935, e a companheira de toda uma vida, falecida em 01 de dezembro de 2013. Esse signo não é pouco, ainda mais em ano de pandemia e isolamento. Abro o primeiro livro em que tive a alegria e a honra de ter uma dedicatória escrita por sua letra de desenho tão singular e delicado, como se evitasse machucar o papel: 01 de dezembro de 2005. O livro oferecido era recém lançado e consistia em uma reunião de ensaios que tem, como capítulo conclusivo, aquele que é intitulado “Carta a Camila”, revelando o diálogo com o trabalho acadêmico escrito por mim anos antes. E, como título dessa reunião de ensaios: A morte de Colombo ou O fim do Ocidente como mito. Também traduzido e publicado em Espanha. Título que ele gostaria tanto de fazer chegar a Nélida Piñon, disse-me em 2018, mencionando em voz baixa qualquer coisa sobre a proximidade da fronteira de Espanha com sua aldeia natal. Recorto “fim”, recorto “Ocidente”. Em mim, uma pausa de silêncio interior, uma espécie mesmo de “exílio interior”, se interpôs entre o dia 01 de dezembro do presente ano e o dia de hoje. Recordei, especialmente, a passagem de Eduardo Lourenço em 2010, por Belém do Pará, quando organizamos, na UFPA, um “Encontro do Pensamento Contemporâneo”, que foi protagonizado por ele e Benedito Nunes, amigos há tantas décadas e que não se viam há cerca de 40 anos. Ele quis passear à tarde na beira do rio, observar as ilhas do outro lado e, apesar do calor e dos quase 90 anos, insistiu e ficou horas visitando o Mercado Ver o Peso, sorrindo e surpreendendo-se alegremente diante de cada novidade.
Recortada a paisagem, no lugar desse corpo, ficou uma paisagem interior a ser interpretada. Não só individualmente, como leitores, mas uma espécie de lacuna a ser preenchida com o sempre complexo trabalho de luto, no caso, para todo um imaginário de país. Em um ano em que o que mais tivemos para elaborar foi, justamente, a ideia do luto. Consecutivo. Numericamente muito superior ao número de dias que seguimos vivendo. Elaborando obituários. Passei o mês de dezembro, sobretudo, quase todo, em silêncio: vendo as notícias e lendo inúmeros textos sobre ele. E, ao ler jornais portugueses durante este mês, algo que fizemos inúmeras vezes, por telefone, juntos, comentando notícias daqui e de lá, nos últimos 14 anos ao menos, e sobretudo o fazíamos nessa época do ano, das férias da universidade, e algumas vezes o fizemos, há mais de dez anos atrás, a partir da casa da professora Cleonice Berardinelli, deparo-me, então, com uma polêmica que não passaria despercebida por ele. A polêmica envolve o racismo institucional e presente em instituições portuguesas, dessa vez apontado contra Mamadou Ba, liderança e produtor intelectual sobre o qual tivemos ocasião de conversar, quando fui a um evento organizado por Boaventura de Sousa Santos em 2018, em Lisboa, e um grupo de ultradireitistas portugueses tentavam impedir a entrada e a fala deste convidado. Quando narrei o episódio a Lourenço, já que naquele mesmo dia nos encontramos à tarde, na Fundação Calouste Gulbenkian, ele retomou uma fala que vinha, há dias, sendo leitmotiv de muitas conversas. A falência do imaginário europeu em lidar com as alteridades, a insuficiência de imaginação das instituições europeias diante do desafio do reconhecimento e da cobrança, em termos de patrimônio e direitos humanos, da conta colonial. E, por extensão, falamos da falência das instituições que ficaram nas colônias a copiar as metrópoles, caso do Brasil, tantas vezes. Por isso, creio que se impõe aqui, neste texto, a necessidade de recordar qual foi a inimizade honorífica granjeada no Brasil à qual me referi anteriormente. Antes disso, reporto-me à edição especial do Jornal de Letras, elaborado em homenagem ao ensaísta e pensador português, para quem a beleza da frase importava tanto quanto o pensamento que ela portava, algo destacado na fala de tantos autores que o homenagearam, vários considerando-o um poeta do pensamento, descrição com a qual, caso se concorde, como é meu caso, estaremos acompanhados de Lídia Jorge – escritora que ele tanto mencionava nas conversas como alguém que enfrenta a herança colonial nas reflexões em forma de romances que publica – e Valter Hugo Mãe. Sua poesia encontrou a forma do ensaio para expressar seu pensamento. “A mesma atenção à língua como fim e não apenas como asa da mensagem”, poderia mesmo ter sido dito de seus escritos, mas isso dizia ele a respeito dos portugueses Maria Velho da Costa e Almeida Faria, comparando-os à atenção com o uso da língua do brasileiro Guimarães Rosa. “Os sertões de Portugal”, intitulava-se este texto.
Na paisagem que, ainda bem, resiste a ver Eduardo Lourenço recortado para fora dela, vai-se elaborando o luto ao qual ele destina o país ao deixá-lo. Este país continuamente interpretado por ele, terá, agora, o trabalho duplo de se interpretar interpretando a ausência de seu singular e imprevisível intérprete. Eis o luto coletivo que nos aguarda, não só aos daquele país, mas a seus leitores de tantas outras paragens. Trabalho de transformação do corpo vivo em memória viva. O pensamento entrelaçado de muitos que a ele prestaram especial atenção ao longo de sua vida e de seus textos vinculados neste trabalho coletivo do luto. Por isso, destacamos essa edição especial do Jornal de Letras, editado por José Carlos Vasconcelos. Ali estão de Gonçalo M. Tavares a António Guterres, secretário geral da ONU. Estão as escritoras e amigas Hélia Correia, Lídia Jorge e a professora Cleonice Berardinelli. Nélida Piñon e Valter Hugo Mãe. Professor Onésimo Teotónio, da Brown University, Fernando Catroga e o poeta Nuno Júdice. Pilar del Río, Guilherme d’Oliveira Martins e Viriato Soromenho-Marques. Entre outros, e como não poderia deixar de ser, Boaventura de Sousa Santos. E é a contribuição deste autor que buscarei glosar, minimamente, antes de finalizar este texto que procura desempenhar o papel de um obituário. Escreveu em sua despedida no Jornal de Letras, o professor Boaventura: “Se o tema da descolonização tivesse assumido entre nós a virulência que tem hoje na França ou na Inglaterra, estou certo que ele, sempre ávido de intervenção, acabaria por se envolver e as opiniões a seu respeito se dividiriam. Mas tal não aconteceu, e foi por isso que pôde representar o máximo de consciência possível (…). Eduardo Lourenço vai ser certamente mais polêmico nos próximos anos. Quem o admira, como eu, pensa que isso é o melhor que lhe pode acontecer. Vamos discuti-lo serena e afavelmente, como afinal ele sempre esperou de nós, e será essa a melhor homenagem que lhe podemos prestar.” Sigo diretamente para a já anunciada inimizade lourenciana: Gilberto Freyre. Essa inimizade não era algo de caráter unicamente pessoal. Conduzia-o a este sentimento uma consciência histórica, uma sensibilidade humana. E era dirigida, abertamente, como o fez em mais de um texto, quando o adversário ainda atuava, tranquilamente, passeando seus galardões pelo Brasil e mundo afora. Era uma denúncia, feita abertamente por Eduardo Lourenço e ignorada por grande parte da intelectualidade, não só de língua portuguesa, mas sobretudo. Gilberto Freyre prestou-se ao papel de aceitar o convite do ditador Salazar – e o salazarismo era motivo precípuo do exílio de Eduardo Lourenço – para viajar pelas colônias africanas assim mantidas por Portugal para dar seu parecer. E foi o que fez, respaldando, aos olhos do mundo, inclusive na ONU, a intenção salazarista de continuar o colonialismo português em África. Um dos primeiros depoimentos lourencianos sobre o tema está na reunião de textos publicada sob o título de Ocasionais I. Este tema está referido, também, na primeira entrevista que fiz a ele, em 1999, para minhas pesquisas de mestrado. A entrevista, na íntegra, foi publicada em 2018 pelo professor Rui Jacinto em um número especial da Iberografias, revista do Centro de Estudos Ibéricos que funciona junto à Biblioteca Eduardo Lourenço, e é editada por professores da Universidad de Salamanca e pela Universidade de Coimbra. Com as palavras de Eduardo Lourenço: “Eu conheci o senhor… O senhor era muito vaidoso. Não era vaidoso: era uma montanha de vaidade. Era tão vaidoso que nem era vaidoso. Mas… a verdade é que era uma personalidade. Mas era uma realidade difícil, ele tinha uma obra original, era um senhor… Não sei se era isso também, as pessoas também obrigam as pessoas a ser vaidosas, projetam sobre os outros com alguma notoriedade. Uma pessoa não tem o controle, fica tão louca com os idólatras. A verdade é o seguinte: talvez isso não se saiba, mas tenho de explicar que aquilo é um artigo de raiva. Polêmico, naturalmente. O Gilberto Freyre, dada justamente sua notoriedade, e porque ele era o homem da Casa Grande e Senzala, porque era o teórico do luso-tropicalismo, etcétera; tudo isso era uma ideologia sobre a qual se fundava a defesa do nosso colonialismo e da nossa guerra da África. E Salazar citava-o, era uma grande caução. A grande caução da nossa luta em África era o Brasil em geral. O Brasil é que era quem nos defendia na ONU, quando nos acusavam de colonialismo e de racismo: ‘Não, nós temos o Brasil, o Brasil é um país multicultural, não é racista.’ E o Embaixador do Brasil levantava-se. E o Gilberto Freyre era a caução intelectual. (…) O Gilberto Freyre era um intelectual prestigiado. É por isso que Salazar citava-o no discurso para levar a cabo aquela cruzada da guerra e do colonialismo em África. (…) Também foi convidado a ir a Angola. Não foi lá passear para escrever um livro.” https://pt.scribd.com/document/396421848/Revista-Iberografias-14 Donde se pode depreender que esta foi uma tentativa de Lourenço de colocar em debate as questões do racismo, do colonialismo e do anticolonialismo (ele não gostava da expressão “pós colonial” e dizia preferir “anticolonial”), tanto em Portugal como no Brasil, há décadas atrás, há mais de 60 anos atrás, pois deixou público desde logo em artigo publicado, logo que conheceu o senhor Gilberto Freyre, sua discordância veemente em relação a suas teorias e modo de proceder. Sabemos que a sombra de Gilberto Freyre paira, ainda hoje, em tantos círculos acadêmicos, como um intérprete do Brasil, e podemos inferir o que isso significou para o jovem professor português que tinha vindo se estabelecer na Bahia, e que ali não ficou mais de um ano por não ter sido bem tratado institucionalmente, como está estabelecido em carta dirigida ao reitor daquela universidade e finalmente publicada somente em dezembro de 2018 pela pesquisadora Maria de Lourdes Soares, também minha ex professora de graduação na UFJF.
Sublinho, ainda, o “sempre ávido de intervenção” do depoimento de Boaventura de Sousa Santos: em julho de 2018, estive presente com Eduardo Lourenço em um evento na Universidade Nova de Lisboa. Tratava-se de um Seminário Internacional de Ecologia Humana, no qual, entre muitos debates com participantes de várias partes do mundo, eu coordenaria um debate sobre documentários etnográficos, participaria em uma intervenção poética chamada “Natureza Viva” com a artista Nena Balthar, e no qual o antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida seria homenageado. Eduardo Lourenço fez questão de assistir a conferência de abertura do mencionado antropólogo e de ser ele a entregar uma homenagem ao palestrante confeccionada pelos organizadores, brasileiros e portugueses – Iva Pires (UNL) e Juracy Marques (UNEB), entre os que eu conhecia. Mais tarde, nesse mesmo dia, o ensaísta português deu uma entrevista para um professor português da UNL (Fernando Ribeiro) e para uma professora brasileira da USP, Paola Poma, e citou a palestra do antropólogo brasileiro com ênfase, sublinhando a nova questão levantada pelo palestrante e que o inquietou. De fato, ao sair das dependências da universidade para buscar um táxi, Eduardo Lourenço pediu que eu fizesse o favor de anotar para ele o nome de uma referência citada pelo antropólogo para que ele pudesse buscar essas leituras. A referência citada por Alfredo Wagner que muito o deixou interessado, inclusive nos dias seguintes, era Achille Mbembe.
Diante da morte de um corpo, sobretudo um corpo tão vivo em nossas memórias, na formação de nosso pensamento, sabemos que a morte não é, não pode ser, nenhum fim. É o nascimento, doloroso, de uma nova relação com as palavras e imagens que ficaram. Uma nova identidade a ser continuamente construída para seus textos, para seu autor, para seus leitores. Nesse movimento, que tantas vezes também será embate, entre o singular e o plural, olharemos para O labirinto da saudade, “a psicanálise mítica do destino português”, assim classificado por ele, e poderemos repetir a pergunta de José Saramago em relação a Os Lusíadas: “o que farei com este livro?” O que faremos destes textos todos? A gentileza e o humor inigualáveis de Eduardo Lourenço, para além de toda a sua imensa construção de conhecimento em forma de textos, aulas e conversas, também farão, já fazem, muita, muita falta. Em nosso último encontro, que foi também o último depoimento dado a mim para a pesquisa de pós doutorado, Eduardo Lourenço, em março de 2019, disse e repetiu a palavra “exílio”. Não escutei bem e ele repetiu: “Exílio. É a palavra que serve para mim e serve para a humanidade inteira”. Singular, plural, Eduardo Lourenço.