Ocorreu no dia 26 de setembro de 2016, a defesa de dissertação da pesquisadora Geovania Machado Aires no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Cartografia Social e Política da Amazônia (PPGCSPA) da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA).
O trabalho intitulado “EDUCAÇÃO A CÉU ABERTO E ESCOLARIZAÇÃO NO TERRITÓRIO DO FORMOSO – um estudo etnográfico a partir dos saberes e conhecimentos tradicionais locais como contribuição para as escolas estabelecidas nas comunidades quilombolas Olho d’água e Lagoa Mirim”, sob orientação da professora Camila do Valle (UFRRJ-UEMA-MAST), teve como banca as antropólogas Maria da Consolação Lucinda (co-orientadora – UEMA), Cynthia Carvalho Martins (UEMA) e Lígia Dabul (UFF).
O público que assistiu a defesa era composto por vários outros estudantes da graduação e mestrado da UEMA e da UFMA, professores doutores da UFMA, tais como Carlos Benedito Rodrigues da Silva e Tamara Fresia Montovany, familiares e quilombolas provenientes das comunidades pesquisadas e da comunidade quilombola à qual pertence a então mestranda, “Bairro Novo”.
A banca destacou a originalidade do trabalho, a documentação iconográfica bem construída, entrevistas e etnografia muito bem realizadas e a professora doutora Lígia Dabul escreveu um texto dando seu parecer e destacando a contribuição do trabalho dissertativo de Geovania para a ampliação da reflexão sobre a linguagem da ciência e suas fronteiras. Sublinhou, também, a pertinência de que esta dissertação se convertesse em subsídio para reflexão e elaboração de material didático das escolas quilombolas presentes no território mencionado.
Destacamos, a seguir, trechos da avaliação da professora Lígia Dabul em relação ao trabalho de Geovania Machado Aires:
“(…) Fica muito evidente, com a leitura, a dedicação, a minúcia do trabalho de pesquisa, o cuidado, o tempo gasto para a coleta de dados, para a reflexão, a orientação que ela recebeu, e a escrita e a elaboração da forma final. Há muito conhecimento – muito conhecimento mesmo – registrado nesse trabalho, na forma de texto da Geovania, em ilustrações também (é muito bem ilustrado; com fotos, ela mesma fez croquis), em referências bem pertinentes a autores que ela leu e incorporou ao seu trabalho (gostei muito, por exemplo, do diálogo com o trabalho de Pierre Bourdieu, Esboço de autoanálise), e às entrevistas que ela transcreveu e ofereceu aos leitores na forma de citação e sobretudo de anexos, que compõem, elas mesmas (as entrevistas), um conjunto de conhecimentos preciosos que ela traz dos quilombos para nós, pessoas da academia – ela mesma quilombola e pessoa da academia.
(…) Eu penso que esse trabalho reforça uma forma de pensar e viver a ciência (…), mas sabendo que não vamos chegar a verdades, que o nosso pensamento é limitado, é provisório, é apenas uma tentativa (de pensar, entender, descrever, explicar, interpretar etc.) que por alguma razão foi estimulada. E foi estimulada dessa vez por razões importantes, que são do reconhecimento dos saberes e dos conhecimentos tradicionais das comunidades quilombolas e da constatação da necessidade de incorporar a escola e o processo de escolarização na luta por esse reconhecimento * – que é a luta pela própria continuidade da vida dessas comunidades e da contínua construção da identidade quilombola – como a autora mostra. Essa atitude de organizar esse corpo de conhecimento, mas entregando sua elaboração também para quilombolas, especialmente para os intelectuais locais, de incluir a pesquisa em um projeto amplo e que é também das comunidades de trazer à luz um material que afirma sua identidade (que o Centro de Ciências e Saberes transforma em fonte para a educação dos quilombolas); essa abertura que a pesquisadora Geovania imprime ao seu trabalho é algo que muitos pesquisadores já formados muitas vezes se esquecem de fazer ou não conseguem mesmo fazer. E que não é fácil fazer e eu parabenizo o programa de pós-graduação ao qual Geovânia pertence (…)
E aqui eu já parto de uma observação sobre a natureza da escrita. Quando a gente escreve, a gente formula, a gente reflete (que é um pouco quando, tantas vezes, a gente se obriga a falar (…) Mas eu queria marcar uma outra dimensão da escrita da dissertação de Geovania, que é a interlocução cruzada. Primeiro, há um nós, um nós quilombola, um nós quilombola mobilizado, em estado de busca e de luta pelo respeito à sua identidade e formas de existência. Tem em alguma medida (…) um nós nesse trabalho. Uma luta que envolve a própria dissertação, que pretende ser uma contribuição a ela. Mas é uma interlocução cruzada porque Geovania escreve não apenas para a academia, mas para os quilombos e para um sistema de educação que não incorporou a necessidade e a urgência de se adequar a essa luta pela construção da identidade quilombola. E eu quero dizer que essa voz estar voltada para diferentes interlocutores não atrapalha, mas ajuda nesse caso da dissertação da Geovania. Ela amplia completamente o alcance do que a autora pretende dizer e faz certamente com que diversas dimensões das informações que traz sejam preservadas no texto(…). E isso traz profundidade, inteireza e contundência ao que propõe com seu trabalho.
(…)
Penso que o seu trabalho coloca questões metodológicas importantes, porque ele muda e afirma muito o lugar e o ponto de vista do observador-pesquisador. Veja bem, não é fonte de dados: você fala em fonte de saberes. Não é informante ou entrevistado, mas intelectuais locais. Ao descrever uma etiqueta (na página 158), você não fala que lá está registrada a ocupação, ou a identificação de quem é o dono do objeto. Você escreve: “Além do objeto exposto, mostra um movimento abstrato, onde as pessoas possam imaginar a real grandeza do lugar de fala de cada um.” E assim vamos. E assim vamos pensando que essa troca de termos nos leva ao questionamento do quanto estamos habituados a construir afastamentos com as próprias palavras que utilizamos para falar das nossas pesquisas. Então, esses seus procedimentos, que eu chamo de metodológicos, estratégicos, caminhos de pesquisa, nos ajudam a pensar nos próprios limites do que a ciência (e eu já falei que eu sou apaixonada pela ciência, por fazer ciência, por trabalhar educando para fazer as pessoas fazerem ciência) social que hoje a gente pratica tem. (…)
Outro item metodológico, que está ligado a esse, é que eu penso que você, ao fazer essa sua pesquisa, você conseguiu, por ter um pertencimento não só real, mas mobilizado, referido a uma luta, a uma resistência, a dores concretas, de perdas, mas uma projeção, um ímpeto de transformações, um vínculo muito forte com o futuro (e não é à toa que você estuda educação, escolar) – então, por ter esse pertencimento mobilizado, eu vejo nos relatos de pesquisa, você acionando a voz, a vida, de quilombolas, muito especiais, que trazem interpretações muito verdadeiras, muito sofisticadas, e reveladoras, sobre a realidade que você está estudando. Então, a minha sensação, é de que você aciona um campo de interpretação muito forte, muito complexo, muito profundo, e traz isso pro seu trabalho. Não vejo que ele, o seu trabalho, perca em objetividade. Mas traz um encontro, um encontro que é raro, é complexo, mas ele é muito bem-vindo entre formas de pensar a realidade muito diferentes, muito distantes, eu diria, e que têm a possibilidade de aproximação muito mais fértil quando a universidade se abre de fato para a formação de intelectuais, pesquisadores, que se mantêm íntegros. (…)”
A professora Cynthia Carvalho Martins destacou em que medida o trabalho, ao apresentar a relação entre saberes e escola, explicita os limites da escola, enquanto instituição oficial, em reconhecer os modos de vida desses grupos que tem afirmado uma identidade. A antropóloga ressaltou que “o trabalho dissertativo apresenta os limites em pesar a escola como lugar de apresentar a “cultura” dos grupos”. Destacou que o desafio que a pesquisa coloca é conectar esses saberes com uma luta por direitos. É possível a esses grupos instituir de um jeito próprio seus modos de vida? As lutas ocorrem somente no sentido de promover uma interlocução com o Estado, ou há lutas fora do Estado, que não são somente para “instituir no Estado o que está fora”? Segue trecho das observações da professora Cynthia Martins:
“O desafio não é somente mudar o conteúdo escolar. É ter direito a um modo de vida próprio, aos segredos, aquilo que não deve ser revelado, é ter outros espaços de exercício de saberes para além da escola, que possam valorizar a oralidade, a musicalidade como uma dimensão do saber e da existência desses grupos – essa instancia de reprodução dos saberes locais que não é universal. Aliás o trabalho aponta para essas possibilidades, de escolas fundadas fora do Estado, o próprio Centro de Ciências e Saberes estaria na condição de um espaço de exercício da autonomia. Fundar escolas tem sido uma forma de luta desses povos, escolas autônomas. Você fala das escolas fundadas sem estado, que funcionam em associações de palha, registradas pelos moradores. Trás referencias ao trabalho do professor Alfredo em que ele cita em Capinzal escolas fundadas sem o estado. ULAC – escolas para os filhos dos associados”. A legitimidade universalizante do Estado se impõe a grupos que viveram anos a sua margem, sem qualquer incentivo, reproduzindo saberes considerados ilegítimos, mas que lhes davam autonomia, como os relativos à roça, à pesca e outros. O trabalho apresenta as disputas entre os saberes dos quilombolas e a unicidade dos modelos dominantes, que se concretizasse em sua falta de ludicidade, em sua estreiteza, em sua força inquestionável porque considerada legitima.