Nova Cartografia Social Da Amazônia

ALCÂNTARA RESISTE: mobilização quilombola contra os deslocamentos compulsórios e ao “acordo” de cessão da base aos Estados Unidos


As comunidades quilombolas de Alcântara juntamente com movimentos sociais e entidades sindicais realizaram uma grande mobilização no município que culminou no bloqueio da entrada do Centro de Lançamento de Alcântara(CLA) por cerca de 6 horas. A mobilização foi articulada pelo Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais, pelo Movimento dos Atingidos Pela Base Espacial, MABE, pelo Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais de Alcântara, pelo Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Familiares de Alcântara (Sintraf) e contou como a adesão de vários movimentos sociais locais e nacionais, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, e associações voluntárias da sociedade civil, Centro de Cultura Negra e Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos Humanos. Cerca de 550 manifestantes se deslocaram para a encruzilhada da rodovia, que liga o porto à cidade de Alcantara, em frente a entrada principal do CLA, às 4 horas da manhã da última terça-feira dia 25 de Julho de 2017. Os manifestantes traziam cartazes, bandeiras e faixas em que reivindicavam a permanência das comunidades da região do litoral, ameaçadas de sofrerem deslocamento compulsório para instalação de Centros de Lançamentos de aluguel. Denunciaram a mercantilização da Base. Na prática o Governo brasileiro através do Ministério da Defesa pretende promover um novo deslocamento compulsório em Alcântara sob o pretexto de garantir a entrada do projeto espacial brasileiro no mercado de commodities.

Mobilização bloqueando entrada do CLA

O bloqueio do CLA pelos quilombolas foi motivado principalmente por noticias, divulgadas com a visita do Ministro da Defesa à Alcântara, de uma retomada das negociações entre o governo brasileiro e os Estados Unidos em torno de um acordo para o uso do Centro de Lançamento de Alcântara por militares norte-americanos. No entendimento das comunidades esse acordo, caso venha mesmo ser firmado, implicará em uma nova violação de direito, uma vez que, acarretará o deslocamento compulsório de centenas de famílias quilombolas e no desaparecimento de dezenas de comunidades. Para além disto, no entendimento dos quilombolas, o governo brasileiro para garantir um acordo com os norte-americanos estaria disposto a violar e atropelar a Constituição brasileira e os dispositivos internacionais dos quais o país é signatário, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Senhor Leonardo dos Anjos discursando duranto mobilização

Eles instalaram um projeto com fins de utilidade pública e soberania nacional e, a partir do momento que nós entregarmos a Base Espacial de Alcântara para os Estados Unidos, eu pergunto aos militares: onde é que fica a nossa soberania? Nós são sabemos como fica nossa soberania tendo os Estados Unidos como nosso vizinho aqui, gente? Então, nós estamos aqui para reivindicar o nosso direito pela terra, pelo nosso litoral do tempo antes que a base quanto ela aqui não estava porque esta terra aqui é dos quilombolas de Alcântara. O governo federal sabe muito bem disso. E essa terra é nossa de fato e de direito, pois nós temos documentos entregues pra nós aqui em Alcântara de lá de Brasília dizendo que a terra é nossa de fato e de direito dos quilombolas de Alcântara. Quando ele leu esse documento lá no Mangueirão, no Seminário em 2005, ele quase chora dizendo: maldita hora em que ele entregou o documento errado para dizer que a terra é nossa de fato e de direito, portanto, nós não abrimos mão dessa região do litoral de Alcântara porque vâo ser prejudicadas todas essas famílias, as famílias que vão sofrer a possível relocação. Portanto a minha fala nesse momento é essa, nós não aceitamos. O governo brasileiro sabe muito bem disso porque ele assinou um acordo no Ministério Público Federal, se eu não estou enganado, no dia nove de novembro de dois mil e oito dizendo que não ia mais haver expansão. Qualquer tipo de aluguel que o governo fosse fazer da base era dentro desses oito mil hectares e não de expandir depois daquela área do Mamuna pra lá. Então, nós não aceitamos de maneira nenhuma. Nós estamos aqui e devemos agradecer os companheiros que vieram de outro estado, de outro município para nos apoiar nesta luta porque nós vamos continuar na luta. O governo brasileiro sabe muito bem que ele tem representação na OEA, na Corte Interamericana de Direitos Humanos, têm ação civil pública tramitando e tem também que esse projeto paralisou a partir do momento que o governo assinou junto às comunidades, os representantes das comunidades quilombolas de que a base não ia mais expandir sobre a área dos quilombolas. Só que agora esse governo que aí está é um governo que todo mundo tem a consciência que é um governo que não tem a capacidade de administrar o país, tanto é que ele está perdendo os deputados federais, gente. Precisa que ele esteja ajoelhando aos pés dos deputados federais, oferecendo vantagens para que eles votem a favor de que ele não saia. Quer dizer, então, é um governo que não tem condição de administrar o país e quer entregar o nosso país dizendo que vai ganhar muito dinheiro aqui. Para que mais dinheiro para esse povo, gente? A gente está vendo o derrame de dinheiro que o governo está fazendo ai e dizendo que o país está quebrado e a gente vai entregar a nossa área de Alcântara e nós vamos pra onde, o pessoal do litoral? Aqui na sede não tem mais espaço, nas periferias de Alcântara, em São Luís não tem espaço e nós vamos para onde? Nós vamos sair e morar nas cabeças dos foguetes? Nós temos que ficar é na nossa área, no nosso território. Ainda que o governo queira passar por cima de nós, mas nós temos pessoas do nosso lado nos apoiando e que vão gritar para o mundo inteiro. E esse governo que está ai se ele concretizar esse acordo, ele vai pagar é na cadeia. Ele pode estar na certeza que se esse governo fizer isso com o povo quilombola de Alcântara, mas ele vai pagar na cadeia porque eu tenho certeza que o povo unido jamais será vencido. Essa luta é de todos. Então companheiros esse é o meu recado, vamos permanecer com a luta porque nós não vamos abrir mão desse território. Eu queira dizer a esses policiais que estão aqui, não sei se fazendo nossa segurança ou a segurança do próprio governo, mas eu queria que tivesse representantes do governo aqui pra nos ouvir. Era isso que eu gostaria de ter: as autoridades para nos ouvir, o nosso clamor porque nós não vamos abrir mão, gente. (Discurso do senhor Leonardo do Anjos durante a manifestação em Alcântara)

O atual Ministro da Defesa tem defendido abertamente o acordo entre os dois países e tem conduzido pessoalmente e de forma unilateral o processo de tentativa entregar parte do território das comunidades quilombolas de Alcântara para a construção do empreendimento norte-americano. O governo tem adotado a postura do não diálogo com as comunidades. Aliás, o governo se aproveitou do fato de que o processo de titulação do território de Alcântara está parado desde 2009, em uma Câmara de Conciliação, para propalar a tentativa do novo acordo. Cabe lembrar que essa dita Câmara de Conciliação não tem participação das comunidades quilombolas alcantarenses que são as principais interessadas no presente caso. Tem, portanto, sua validade questionável por negar a possibilidade de manifestação dos quilombolas em mais uma das muitas facetas do racismo institucional e violência que o estado brasileiro pratica contra os quilombolas de Alcântara ao longo desse processo, que se arrasta desde 1980. São 37 anos sem que estas comunidades tenham direito a planejar seu futuro.

Assim, após liberarem a entrada do Centro de Lançamento (CLA) os manifestantes seguiram numa caminhada de cerca de 7 quilômetros até a Praça da Matriz no centro da cidade, durante a caminhada os participantes usaram carro de som, propagando palavras-de-ordem e músicas, manifestando contra a ofensiva que ocorre contra os direitos sociais e a legislação trabalhista. Também foi possível durante os discursos escutar sucessivos gritos de protesto: “FORA TEMER” e “FORA TRUMP”.

Em todos os semblantes muita preocupação com uma possível ampliação do conflito, estendendo-o a governos estrangeiros. Uma vez que o estado brasileiro se recusa a dialogar com os quilombolas, os representantes das comunidades ficam muito preocupados com uma eventual possibilidade de ter que estabelecer um processo de luta com pessoas de outro países. A caminhada terminou com um ato na chamada “Praça dos três poderes” com a queima dos bonecos que representavam respectivamente Trump e Temer.

Queima de bonecos que representavam Trump e Temer

A repercussão dos protestos em Alcântara ganhou imediatamente dimensão nacional, obrigando o Ministério da Defesa a se manifestar por meio de nota à imprensa, informando que de fato existe o interesse de países como Estados Unidos, França, Israel e Rússia para usar o Centro de Lançamento de Alcântara. Entretanto diferente do que foi veiculado para o Ministério da Defesa, não se trata de acordo para o uso do Centro de Lançamento por potencias estrangeiras e sim de construção de centros de lançamentos de uso exclusivo destes países. A emenda parece pior que o soneto.

Os representantes dos quilombolas, o STTR e os movimentos sociais (MONTRA, MABE) dizem que após o governo ter notícia do processo de mobilização que está ocorrendo em todo o território, foram imediatamente contactados através de ligações telefônicas por funcionários da Fundação Cultural Palmares, solicitando uma agenda de emergência com os representantes das comunidades para o dia 29 de julho, no próximo sábado, em uma tentativa um tanto desesperada de formatar um “dispositivo” a ser discutido e encaixado em uma outra reunião no dia 02 de agosto em Brasília no Ministério da Defesa. A princípio a ideia dos funcionários da Fundação Cultural Palmares era tirar uma comissão de 8 quilombolas para chancelar um tipo de acordo arquitetado pela Casa Civil da Presidencia da República, que parecer ser favorável ao atropelamento da legislação e das garantias judiciais através da adoção de uma decisão de cunho político para poder garantir o acordo com os norte-americanos. Foram justamente propostas desta ordem que foram recusadas pelas comunidades e movimentos sociais de Alcântara durante os protestos.

As comunidades com a certeza e a consciência de seus direitos permanecem firmes na luta pela garantia da titulação do seus território de forma integral, não estando dispostas a fazer nenhum tipo de concessão, já que no entendimento delas o titulo definitivo do território é um direito fundamental e inegociável. Neste sentido a afirmativa que reiteraram é que não darão um passo atrás. O acordo que o atual governo tenta ressuscitar é o mesmo que foi rejeitado em plebiscito popular nacional realizado nos anos 2002/2003, em que mais de 90% da população brasileira rejeitaram o acordo por entender que este tipo de acordo com outros paises fere a soberania nacional. Esse é o mesmo entendimento também defendido pelas comunidades quilombolas em seu repto contra deslocamentos compulsórios.

Manifestantes

Contextualizando o Conflito.

O conflito envolvendo o governo e as comunidades quilombolas de Alcântara no Maranhão, já perdura desde 1980. São quase 40 anos. Durante todo esse tempo, as comunidades vêm resistindo e denunciando às várias investidas governamentais, no sentido de vilipendiar seus direitos garantidos, tanto pela Carta Magna de 1988, quanto por dispositivos infraconstitucionais e convenções internacionais, das quais o país é signatário, mas que, na prática, não tem respeitado.

No processo de expropriação do território quilombola, o governo do Estado do Maranhão através do decreto nº 7.320 de 1980, declarou como sendo de interesse público 52 mil hectares de terra, que seriam destinados à Base Espacial sob a justificativa que o município configurava vazio demográfico. Não satisfeitos, interesses industriais e militares usaram de lobby e influência política para ampliar em mais 10 mil hectares a área desapropriada. O fizeram através de outro decreto sem número, em 1991, instituido pelo então Presidente da República Fernando Collor de Melo.

A atitude do governo brasileiro acabou privando os quilombolas alcantarense de poderem se relacionar com seus locais sagrados, de enterrarem seus mortos nos históricos cemitérios e cultuarem e zelarem seus familiares já falecidos. Em virtude do deslocamento compulsório, efetivado em 1986-7, de 312 famílias de 31 povoados para 7 agrovilas, interditaram uma vasta área para a implantação do CLA. O governo ainda usou de outro decreto o de n.72.571, para reduzir o módulo agrícola de Alcântara de 35 para 15 hectares. Ora se de fato Alcântara consistia num vazio demográfico não haveria motivos para tal redução.

Em 11 anos, de 1980 a 1991, o governo usurpou, cerca de 56% das terras do Município de Alcântara, terras que foram destinadas para fins militares, as mesmas terras que já se encontram sob controle absoluto e inconteste de famílias quilombolas Alcantarenses, há pelo menos tres séculos.

O projeto espacial brasileiro foi pensado para não levar em consideração em nenhum momento às comunidades quilombolas de Alcântara, mostrando de forma cruel a face racista do governo que possui um ponto vista equivocado sobre os quilombolas como sendo atrasados tecnologicamente. Além disto veem o processo de resistência quilombola como um obstáculo ao “desenvolvimento” do país, buscando estabelecer uma falsa oposição entre as comunidades quilombolas e o desenvolvimento tecnológico.

Segundo proposta apresentada pela Agência Espacial Brasileira(AEB) às lideranças quilombolas e movimentos sociais de Alcântara em 2006, previa-se a implantação do Centro Espacial de Alcântara (CEA), compreendendo a construção de “sítios de lançamentos” comerciais de artefatos espaciais, bem como a implementação de “áreas institucionais”, como mostra mapa abaixo, com vistas a cumprir o acordo celebrado entre os governos do Brasil e da Ucrânia, no ano de 1999, que resultou na criação de uma Empresa Binacional denominada Alcântara Cyclone Space (ACS). Em consonância com estes objetivos havia os empreendimentos pretendidos pelo Ministério de Ciência e Tecnologia em combinação com o Comando da Aeronáutica.

Area pretendida para implantação do Centro Espacial de Alcântara

O Centro Espacial de Alcântara seria um empreendimento com finalidade distinta daquela do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA). Na prática será um novo empreendimento, já que a finalidade será para fins comerciais, ou seja, servir como base de aluguel, da qual outros países poderão lançar artefatos espaciais que estão fora do controle do estado brasileiro. Isto significa dizer que o país disponibiliza seu programa espacial à dinâmica de mercado commodities. O CEA não será de utilidade pública como o CLA, entretanto a AEB e o Ministério da Ciência e Tecnologia pretendem implantá-lo dentro de uma área que foi desapropriada para fins de utilidade pública.

O projeto espacial brasileiro para poder atender às exigências de potencias estrangeiras procederia a uma mudança de finalidade. Tal mudança não leva em conta questões de soberania nacional, e muito menos as comunidades quilombolas uma que conforme os decretos expropriatórios da década de 80 do século passado a área era destinada para fins de utilidade pública, entretanto conforme proposta da Agência Espacial Brasileira (AEB) de 2006, apresenta um novo empreendimento denominado de Centro Espacial de Alcântara (CEA) que consiste em integrar o programa espacial brasileiro ao mercado de commodities, com a construção de sítios com plataforma para lançamentos de artefatos espaciais de aluguel e de áreas institucionais de apoio dentro do território quilombola de Alcântara.

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