Nova Cartografia Social Da Amazônia

A DESINTERDIÇÃO DO SAGRADO PROFANADO: LIMPEZA DO CEMITÉRIO DA COMUNIDADE QUILOMBOLA N. SRA. DA BATALHA, NO ALTO RIO ACARÁ, EM 24/10/2021


Momento de Oração – próximo à sepultura de D. Colodina, Cemitério da comunidade Nossa Senhora da Batalha

24 de outubro de 2021 representou um divisor de águas na luta pela restituição do território etnicamente configurado do Alto Acará, face ao significado político e simbólico da abertura de espaços sagrados anteriormente interditados, violados, profanados. Em diálogo com apontamentos de Jean-Luc Nancy e Franz Fanon, o filosofo Achille Mbembe (2019, p. 70) utiliza o termo declosão para designar a retirada das cercas “de modo que aquilo que estava enclausurado possa emergir e desabrochar”. O autor nos convida a imaginar novas formas de pensar, novas possibilidades de reinventar um outro mundo que viabilizem um novo jeito de fazer-se humano – uma nova humanidade e, um dos caminhos para se reposicionar que não seja construído através da hierarquia é feito através das “instâncias de cura”, o processo de reconstrução da imagem desumanizada produzida pela racionalidade colonial acerca de corpos negros africanos e seus descendentes. Para o autor, a instância de cura é caracterizada pelas práticas coletivas e políticas reparadoras que produzam uma escalada de humanidade e que colocam os sujeitos outrora subjugados pela razão colonial em posição de dignidade e humanidade.

Declodir, portanto, consiste num ato de autocriação, de ruptura com a “região extraordinariamente estéril e árida”, com a “rampa essencialmente despojada”, para que um “autêntico ressurgimento possa acontecer” (Fanon, 2008, p. 26).

Referida declosão também pode ser inscrita metaforicamente como o despertar dos muzimos, que na cosmogonia banto representam as almas dos mortos. O Alto Acará é um lugar marcado por violações desencadeadas pela plantation do dendê, que se estendem por corpos, territórios, imaginários e ossadas humanas. Corresponde a uma heteronomia que a tudo pretende subsumir, colonizar e controlar. Não obstante, irrompem contestações organizadas a esse esquema de pensamento-ação protagonizadas por agentes sociais autoidentificados como quilombolas, que reivindicam o reconhecimento de seus direitos territoriais e étnicos infringidos secularmente, e drasticamente agravados após a chegada dos megaempreendimentos da dendeicultura no início da década de 1980.

O ressurgimento dos muzimos ocorre 751 dias após o fatídico 4 de outubro de 2019. Naquele dia um grupo de seis pessoas da associação quilombola organizou uma breve visita ao cemitério da antiga comunidade Nossa Senhora da Batalha, margem direita do rio Miritipitanga (Acará), com o objetivo de verificar as condições do referido campo sagrado, para assim organizar uma limpeza antes do Dia de Finados daquele ano. Pouco tempo depois que ali chegaram foram cercados, intimidados e hostilizados por seguranças da Agropalma, comandados pelo Sr. Paulo Gaia, chefe da segurança patrimonial da empresa, e apoiados por policiais militares da Vila Palmares. A tensão irrompeu o ponto de uma quase confrontação direta. Os quilombolas foram ameaçados de prisão por estarem “invadindo propriedade privada da empresa” e advertidos a não mais retornarem ao local onde estão sepultados seus entes queridos.

O interstício entre o anoitecer e o deslocamento até a antiga Vila Nossa Senhora da Batalha ao alvorecer foi marcado por elevada tensão diante da iminência de represálias e do possível confronto direto com seguranças da empresa e policiais militares. A vigilância em forma de cerco não estava circunscrita apenas a lideranças quilombolas que residem na Vila Palmares. Pesquisadores do PNCSA/NAEA/UFPA e equipe da Negritar Filmes e Produções foram seguidos por uma viatura da PM desde a Vila Turi-açu até a residência do presidente da associação. O mesmo veículo ficou rondando o local de maneira reiterada e intimidatória. A sensação era de permanente vigilância.

A saída ao cemitério foi cercada de cuidados ante os riscos envolvidos. Um grupo de 22 pessoas composto de 17 quilombolas (11 homens e quatro mulheres) integrantes da Associação dos Remanescentes de Quilombos da Comunidade da Balsa, Turi-açu, Gonçalves e Vila Palmares do Vale do Acará (ARQVA), 3 cinegrafistas da Negritar Filmes e Produções e 2 representantes do PNCSA/NAEA UFPA, saiu às 6:00 h da Vila Palmares pela estrada conhecida como “Nova União”. O acesso foi construído pela Prefeitura Municipal de Tailândia na década de 1990 para interligar Palmares à beira do rio Acará, contudo, atualmente encontra-se aprisionada na disposição labiríntica dos monocultivos de dendezeiros implantados em 2001 pela Agropalma S. A. Como assinala a geógrafa Diana Ojeda, acerca dos dendezais em Montes de María, no Caribe colombiano, as antigas veredas por onde ocorria a livre circulação de pessoas se transformaram em “caminhos condenados”.

O cruzamento por esse espaço controlado, de aproximadamente 9 km, durou onze minutos. Depois de chegar ao local escolhido para deixar os veículos, caminhou-se quinze minutos pelo antigo caminho que dava acesso à margem esquerda do rio, em frente à Vila Nossa Senhora da Batalha. Foi necessário reabri-lo com facões, uma vez que há aproximadamente 17 anos os quilombolas não andavam por ele. Defronte da vila morava o sr. Américo. Anos após a expulsão dos povos tradicionais do Alto Acará, restaram apenas resquícios de uma tapera.

A travessia do rio Acará foi feita a remo em uma canoa pequena com motor de popa acoplado, designada localmente como “rabeta”. É um dos tipos de embarcação utilizado pelos outrora “beiradeiros” que teimosamente insistem em exercer a pesca artesanal, a despeito das proibições impostas pela empresa controladora da circulação fluvial e terrestre.

Travessia de quilombolas no rio Acará, em direção ao cemitério da comunidade Nossa Senhora da Batalha

Quando nós morava na beira do rio, nós tinha uma dificuldade, mas nós era livre, andava, pescava, caçava onde quisesse para pegar nossa alimentação. Hoje em dia ninguém pode descer na beira do rio porque eles colocam câmera nas estradas que descem pra lá, tem câmera na beira do rio em cima da ponte onde eles atravessam por cima do rio, é drone, é tudo. Se eles saberem de alguém que tá pra lá, eles pegam, eles levam a polícia, tomam o peixe que a pessoa pegou, tomam a linha, tomam a malhadeira, tomam a zagaia – zagaia não sei se vocês sabem, são três ferros na ponta de uma vara para chuchar o peixe – e se a pessoa tiver de bicicleta, eles tomam a bicicleta, jogam em cima da viatura, levam para a vila [Palmares] e fazem a pessoa andar 8 km de pé (fala do Sr. Raimundo Serrão. Quilombola do Alto Acará, no Encontro de Ciências e Saberes, 2021).

Os quilombolas organizaram previamente uma pequena coleta entre si visando comprar alimentação para o almoço. Levaram também panelas e outros utensílios necessários ao preparo dos alimentos. Ao subir o pequeno declive entre o porto e as ruínas da comunidade Nossa Senhora da Batalha, uma das primeiras tarefas foi limpar o local do antigo salão de festas para que pudesse servir de abrigo provisório durante a atividade de limpeza do cemitério. Enquanto as mulheres (Eliana, Eliene, Rosa e Maria Raimunda) improvisavam um fogão à lenha, dois jovens quilombolas usavam facão e enxada para retirar a camada superficial do solo constituída por terra, biomassa e raízes. Tal como na arqueologia do saber, a remoção das camadas evidencia as relações que estavam encobertas e/ou naturalizadas como algo dado. De repente, ouve-se o tilintar das ferramentas no piso de cimento do longevo salão. Finalmente o que estava eclipsado veio à luz. Sinais de presença humana, de uma vida social marcada por festejos, celebrações e convivência em comum.

Jovens removem camada superficial do solo no antigo salão de festas da comunidade Nossa Senhora da Batalha

O cemitério está localizado no Alto rio Acará, às margens do rio e próximo ao local onde ficava a comunidade quilombola N. Sra. da Batalha. O território, ao longo das últimas décadas do século XX sofreu alterações em função da expropriação de seus moradores realizada por terceiros à serviço da empresa de dendeicultura Agropalma, seja através de compras dos terrenos à preços irrisórios, seja através de ameaças de pistoleiros. E ao sufocar o cemitério com o adensamento da floresta secundária, ficou notória a intenção de apagar a cultura material e as lembranças de parentes, amigos, enfim dos antepassados.

Localização do cemitério da comunidade Nossa Senhora da Batalha1

A expressão de alegria estampada no rosto e nas falas dos quilombolas era incontornável. Eles reabriram o caminho entre o salão de festas e o cemitério, afastando a juquira formada por pequenos arbustos, cipós de fogo e tiriricas. O cuidadoso trabalho em conjunto para realizar o desbaste, poda de árvores e a limpeza do cemitério tinham como pano de fundo a intenção de prepará-lo para a iluminação do Dia de Finados a ocorrer no dia 2 de novembro. Na medida em que a vegetação era bosqueada, as cruzes de madeira consumidas pela ação do tempo iam aparecendo, somando-se aos sepulcros de D. Colodina (esposa de mestre Cláudio, carpinteiro influente na comunidade) e do negro Vanjoca, filho de D. Fábia e morador da cachoeira, temido por sua valentia e “brabeza”.

Cruz de negro Vanjoca, cemitério da comunidade Nossa Senhora da Batalha; figura 5 – sepultura de desconhecido, no mesmo cemitério

Cruz de negro Vanjoca, cemitério da comunidade Nossa Senhora da Cruz de negro Vanjoca, cemitério da comunidade Nossa Senhora da Batalha; figura 5 – sepultura de desconhecido, no mesmo cemitério

A ideia de limpeza partilhada pelos quilombolas diferente radicalmente do sentido atribuído pela pistolagem por ocasião da expulsão dos povos tradicionais do Alto Acará, cuja finalidade era “limpar” as margens do rio de moradores, tornando-as “livres e desembaraçadas” consoante o saber jurídico, e abrindo caminho para a chegada irrefreável da plantation moderna da dendeicultura. Limpar o cemitério exprime uma relação de cuidado para com as memórias dos antepassados que ali descansam. Consiste em zelar um patrimônio de grande significado simbólico e afetivo, “que também corresponde a uma luta pela vida”. (MBEMBE, 2019).
De maneira respeitosa, nos pequenos intervalos do trabalho de mutirão realizado, os pesquisadores do PNCSA indagaram aos presentes se algum de seus parentes estaria sepultado no referido cemitério. Ao todo nove pessoas confirmaram que têm entes queridos inumados no local, conforme descrição a seguir:

Após o encerramento da limpeza por volta de 11:00 h, os quilombolas se reuniram em volta da sepultura de dona Colodina e realizaram uma oração evocando a importância simbólica e política do momento vivido. Relembraram a dureza das violências reiteradas que lhes têm sido infligidas, ao tempo em que manifestaram agradecimento aos pesquisadores do PNCSA pelas relações sociais de pesquisa construídas nos últimos dois anos. Várias falas foram categóricas em afirmar que os quilombolas do Alto Acará só passaram a ser minimamente escutados após um trabalho acurado de pesquisa que oferece subsídios concretos em apoio à luta política pelo reconhecimento do território.

Entre cânticos e contação de estórias intrínsecos ao trabalho de mutirão, reviviam lembranças das partidas de futebol que ocorriam nos dois campos outrora existentes na comunidade. Como esquecer de Carlito, craque peladeiro do Alto Acará, que “infernizava” os times adversários com dribles incrivelmente fatais? Como apagar da memória as aulas na escola construída pelos próprios moradores? Ali muitos foram alfabetizados pela professora Francisca. Hoje subsistem apenas as ruínas.

Figura 6– ruínas da antiga escola de ensino fundamental na comunidade

Figura 7 – local do antigo campo de futebol

O almoço foi um momento de partilha dos alimentos adquiridos através de coleta em dinheiro. A ajuda mútua tem se constituído como um dos principais meios de sustentação da luta pelo território. Cada um ajuda como pode, mesmo diante de tantas dificuldades a que estão expostos. O cardápio da alimentação envolveu frango guisado, feijão com charque, arroz, macarrão, salada, farinha de mandioca e açaí. A água trazida da Vila Palmares não foi suficiente para suprir a todos durante a atividade e teve que se reposta de um pequeno córrego situado às proximidades da vila. Todos se alimentaram não apenas de nutrientes, mas, sobretudo, de esperança.

Figuras 8 e 9 – Almoço no antigo salão de festas da comunidade

Figuras 8 e 9 – Almoço no antigo salão de festas da comunidade

A água trazida da vila Palmares não foi suficiente para suprir a todos durante a atividade e teve que ser reposta de um pequeno córrego situado às proximidades da comunidade Nossa Senhora da Batalha. Isso se fez necessário porque a água do rio é considerada imprópria para consumo humano e recreação, devido à contaminação por efluentes industriais (tibórnia), glifosato e vazamentos contínuos de óleo de dendê na referida bacia hidrográfica. Reiteradamente a associação quilombola tem denunciado o cometimento de danos ambientais no território, mas as autoridades permanecem silentes diante de tantas violações.

Numa breve caminhada pela vegetação secundária se chega a um bacurizal nativo, situado um pouco à montante do porto da comunidade. Os bacurizeiros ainda estão com um diâmetro reduzido em comparação à fase adulta. As plantas em idade produtiva, conforme se verifica na floração espontânea, estão localizadas às proximidades da antiga escola comunitária.   Atravessando um pequeno córrego após o bacurizal se chega ao porto de um antigo morador chamado Venceslau. Ali exista uma residência e um comércio bem sortido e movimentado, segundo os quilombolas.

Numa roda de conversa contemplando o movimento das águas do rio e a beleza da vegetação em suas margens, Joaquim Pimenta,  presidente da associação, assim sublinhou, descrevendo, à sua maneira de ver, os laços entre território, memória e identidade.

“A gente conseguir esse território faltando quinze dias para eu morrer, foi a melhor coisa que eu fiz na minha vida. Porque você conseguir de volta o que era teu na tua infância, não tem dinheiro que pague. Era difícil, era, não resta dúvida, mas aonde a gente aprendeu os primeiros passos da vida da gente foi aqui. A gente não entendia nada do que era da vida, do que era bom e do que era ruim, a gente simplesmente vivia. Às vezes amanhecia o dia, nós não tínhamos nem café para tomar. Às vezes conseguia o almoço, mas às vezes não tinha janta, mas nós éramos feliz nessa comunidade. Lá de casa, que era logo lá abaixo, a gente vinha pra cá, às vezes não deixava nada em casa, mas vinha todo mundo, pegava a canoa a remo e vinha pra cá. Geralmente nos finais de semana chegava aí só com a cara e a coragem. Aí todo mundo se reunia, tudo que tinha misturava, todo mundo comia, sábado, domingo. Sabe aquela situação que quando você chega no meio dos teus, acaba a preocupação com o que tu vais comer, o prazer que tu tens é de estar feliz, é de estar tomando banho, contando prosa. Tinha uns caras aqui de cima que já morreram, que a gente inventava as brincadeiras aqui, eles inventavam, rapaz, era tanta brincadeira que a gente sorria até de madrugada. São coisas que assim, a gente traz na mente, nós era muito novo, não esquece, porque às vezes alguém diz assim: “larga esse negócio de mão”. Cara, eu deixo de conversar com o cara, saio de perto dele porque a pessoa que não tem cultura ela não está nem aí, não sabe o que é uma tradição, não está nem aí, ela pega ela sai fora, mas quando você começa a sentir na pele, o teu corpo sente falta, você vai viver mais vai ficar faltando algo, e quando há uma única oportunidade que tu vê que há uma chance de tu conquistar de volta, não precisa nem falar em dinheiro, a gente luta com todas as forças.

Figura 10 – Conversa informal entre os quilombolas no porto do Venceslau, comunidade Nossa Senhora da Batalha

O retorno a Palmares ocorreu às 14:15 h, sob um clima de esperança e de renovação de energia para a luta.  O território dos vivos e o território dos mortos  estão em disputa para continuar a existir, para o seu ressurgimento.

 

Texto: Elielson Pereira da Silva e Maria da Paz Saavedra

Fotografias: Elielson Silva

 

Referências

FANON. F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

MBEMBE, A. Sair da grande noite: ensaio sobre a África descolonizada. Tradução de Fábio Ribeiro – Petrópolis, RJ: Vozes, 2019.

OJEDA, D. et al. Caminos condenados. Pontifícia Universidad Javeriana, Laguna Libros: Bogotá, 2016.

PEREIRA, J.C.M.S. À flor da terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Garamond: IPHAN, 2007.

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