Fonte: amazonamazonia.com.br
Chega ao público o livro Quilombos do Andirá: das travas à abertura dos cadeados (Valer), resultado da pesquisa realizada pela professora da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) Magela Mafra de Andrade Ranciaro, para a obtenção do título de doutora em Antropologia Social pelo PPGAS/Ufam.
Magela fez pesquisa de campo nas comunidades quilombolas de Santa Teresa do Matupiri, Boa Fé, São Pedro, Trindade e Ituquara, localizadas nas margens do rio Andirá, no município de Barreirinha (AM), cuja sede homônima está a 370 quilômetros de Manaus.
Antes, entre 1996 e 1999, a pesquisadora, nascida em Barreirinha, havia atuado nas comunidades Freguesia do Andirá, Piraí e Santa Teresa do Matupiri, para a realização da sua dissertação de mestrado defendida na Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC/SP). Este estudo analisou, pelas memórias do cotidiano, a relações de trabalho, modo de vida e conteúdo imaginário nas três comunidades e, também, resultou no livro intitulado “Andirá: Memórias do Cotidiano e Representações Sociais” (Edua, 2004).
No primeiro estudo, ela já notou que os moradores de Santa Teresa do Matupiri, embora remanescentes de quilombos, eram identificados sob a denominação genérica de ribeirinhos e não como quilombolas, e assim por todos percebidos e referenciados pelo poder público.
Como explica a pesquisadora: “Eles não tinham seu reconhecimento identitário”.
Mas dez anos depois, essa e as outras quatro comunidades, acima registradas, se articularam e fundaram a Federação das Organizações Quilombolas do Município de Barreirinha (FOQMB), em 2009, cuja pauta de reivindicação apontava para discussões sobre o reconhecimento identitário daquelas comunidades. A iniciativa despertou atenção da pesquisadora.
“Intrigou-me entender por que os agentes sociais, antes identificados segundo a categorização de ribeirinhos, agora reivindicavam a sua identidade de quilombola”, explica Magela, na apresentação do livro.
A mudança implica possibilidade de reconhecimento de direitos jurídico, político e social e, sobretudo, do direito de permanência a um território herdado de seus antepassados, conferindo à linhagem de descendência direitos étnicos propostos por uma política de territorialidade assegurada pela Constituição de 1988.
A luta dos quilombolas pelo reconhecimento étnico e pela regularização fundiária agudizam os conflitos, principalmente a partir de 1980, com a “chegada” de grandes empreendimentos dos agronegócios, ou seja, com o comércio clandestino de madeiras – via de regra associado aos pecuaristas – e com os negócios da pesca predatória, que controla os lagos e rios da região.
“Em meio a conflitos e violências praticados pela disputa desses espaços, estão as comunidades quilombolas que lutam incessantemente pela preservação das suas áreas de manejo”, explica Magela.
A hipótese formulada para a pesquisa está definida a partir dessa realidade: “em meio aos conflitos agrários, ocasionados em detrimento do monopólio da terra pelos agronegócios, as estratégias de construção da autonomia pelo movimento organizado – no contraponto à política de tutela – permitiram aos agentes sociais consolidar seu projeto hegemônico de identidade quilombola”.
Essa formulação decorre da revisão literária sobre o tema, das observações de campo, das narrativas dos quilombolas (agentes sociais) e, sobretudo, da documentação dos arquivos da FOQMB.
Outra questão fundamental da pesquisa é o acompanhamento dos desdobramentos da determinação constitucional de que os remanescentes de quilombos possuem direitos territoriais. No Amazonas, esse reconhecimento se tornou mais difícil, porque, na historiografia oficial, a interpretação prevalecente até bem pouco tempo era de que a presença de negros escravizados em território amazonense seria irrisória.
Assim, esse novo livro de Magela contribui, também, com o reconhecimento da história e ampliação da visibilidade social dessas comunidades, materializada por meio de seus processos de luta por direitos étnicos e da fundamentação empírica do sentimento de pertença ao território, fatos que se contrapõem aos das atividades econômicas predatórias.
Isto está evidente, principalmente, na voz dos quilombolas que, para além de um simples relato, fazem denúncias de crimes contra a destruição do meio ambiente, via de regra, ignorados ou pouco levados em consideração pelo poder público. Exemplo disso são as narrativas da ex-presidente da FOQMB, Maria Amélia dos Santos Castro, quando ressalta fatos ocorridos nas áreas de manejo dos quilombos do Andirá:
Então, para mim – na minha opinião – nenhum fazendeiro trouxe felicidade para dentro do quilombo. Eles tiram o povo quilombola do modo que viviam, fazendo o seu guaraná, fazendo a sua roça, plantado abacaxi, tirando cipó, plantando tudo que eles imaginavam.
Hoje em dia o nosso povo fica é levando uma vida sacrificada para ganhar uma diária de R$ 25 (vinte e cinco reais), trabalhando o dia inteiro, das sete ao meio-dia e de uma até as cinco horas da tarde.
Mas tem os que imaginam que a gente sem o fazendeiro não vamos sobreviver; mas é o contrário, sem o fazendeiro, nos viveremos muito bem!
Ora, se a gente não pode mais fazer roça, a gente não pode mais plantar banana, não pode mais plantar nada porque, além deles – os fazendeiros – impedirem, vem o boi e quebra tudo o que com tanto sacrifício nós plantamos.
Então, sem eles, nós vamos viver como antes a gente vivia, plantando o nosso guaraná, plantando a nossa laranja, nossa melancia, nosso feijão, nosso maracujá, como nós sobrevivíamos antigamente.
Maria Amélia dos Santos Castro, ex-presidente da FOQMB
A literatura sobre poder, identidade, etnicidade e territorialidade, articuladas aos conhecimentos adquiridos com os quilombolas, lavaram Magela a identificar: o mito de origem dos quilombos atribuído ao ex-escravo, Benedito Rodrigues da Costa, o fundador do território; os conflitos agrários ali existentes; e a forma como se dá o mito de passagem da condição de ribeirinhos a se assumirem etnicamente sob a designação histórica de quilombolas.
“[…] As narrativas dos agentes sociais informaram sobre o sentimento de pertença, das diferenças de critérios, estabelecidos no bojo de interesse mútuo confrontados com seus antagonistas – sejam esses representados pelas agências ou aqueles agentes externos – ao mesmo tempo que demonstram que tais propósitos estão materializados nas propostas advindas das pautas de reivindicação do movimento representativo das comunidades quilombolas do rio Andirá”, explica.
Observa a pesquisadora que os quilombolas do rio Andirá se construíram etnicamente por meio das ações reivindicatórias que se desenvolveram no interior do movimento político-organizativo, mais precisamente da FOQMB e suas parcerias construídas. Acresce-se a essa luta, o conceito de pertença o qual, na atualidade, evoca e fixa politicamente, o termo quilombo, marco do território conquistado pela linhagem de descendência de seus antepassados, que fugiam da escravidão e, consequentemente, a existência e permanência desse grupo étnico à terra tradicionalmente ocupada.
[…] evidenciaram-se os motivos pelos quais os agentes sociais antes caracterizados como ribeirinhos passaram a assumir a autoidentificação, resultado do processo de construção identitária em que expressamente se autodesignam como quilombolas. O quilombo que do ponto de vista político – para além de um simples espaço de vivência cotidiana – passou a ser por eles atualmente interpretado, tendo por ênfase o sentimento de pertença; por meio de reivindicações encaminhadas ao Estado, fixaram-se tais propósitos como uma representação política-administrativa […]
[…] Disso se tem a compreensão de que o projeto hegemônico do coletivo quilombola é resultante do processo de construção histórica pelo qual se firma e afirma, essencialmente, o sentimento profundo de pertença ao território […] Assim, ao ampliar antigas tradições herdadas de seus antepassados, os quilombos do Andirá firmam um vínculo com a terra para assegurar alternativas de pertencimento ao espaço social conquistado […] A então presidente da FOQMB, Maria Amélia dos Santos Castro, afirma, em síntese, sustentando convictamente ter sido por via da mobilização étnica, isto é, pelas frestas de abertura dos “cadeados que o olhar de cada quilombola se modificou.
Magela Ranciaro, pesquisadora
Recepção
“A pesquisa realizada por Magela, aprofundada em diversas etapas da sua formação, tem sido, sem sombra de dúvidas, uma contribuição relevante para documentar e, sobretudo, elucidar os processos de territorialização negra na região Amazônica, desvendando modalidades de lutas que dialogam diretamente com as de outras partes do país e das Américas”.
Ilka Boaventura Leite, professora do Departamento de Antropologia da UFSC
“As dificuldades de se entender tais comunidades remanescentes de quilombos não são poucas e estão a exigir todo o tempo uma série de distinções. Assim, pode-se dizer que com este livro […] não se está diante de qualquer “nacionalismo étnico” que quer configurar “nações ou territórios autônomos”, mas de fatores de mobilização étnica que se contrapõem a determinados atos de Estado e aos dispositivos que os caracterizam, evidenciando as terras tradicionalmente ocupadas, de acordo com o Artigo 231 da Constituição de 1988”
Alfredo Wagner Berno de Almeida, antropólogo, pesquisador do CNPq e professor do PPGAS/Ufam
“Maria Magela Andrade Ranciaro apresenta, neste livro, um quadro teórico e empírico, vital para a análise da Amazônia, que se revela pelos conflitos. Sob as árvores e entre as malhas dos rios, que foram biomas e ecossistemas, os novos sujeitos impõem suas histórias, e apresentam-se aos aliados em compromissos, que recusam-se a atestar o esquecimento e o desconhecimento”.
Marilene Corrêa da Silva Freitas, socióloga, pesquisadora e professora titular da Ufam