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MEMÓRIAS, SABERES E PROJETOS QUE A COVID-19 NÃO CONSEGUE LEVAR: LIDERANÇA E ENSINAMENTOS DE TIA UIA NO QUILOMBO DA RASA (RJ)


Eu falei com meus irmãos, sim. Pode ser. Vai ser uma honra. Pra gente aqui vai ser uma honra está divulgando um pouco da história de nossa mãe. Vai ser uma honra, mesmo. (…) Tá bom, conversei com meus irmãos. Eles, pô! Não precisava nem você entrá em contato com a gente, rapaz! Uma coisa dessa, não pode deixar passar, não. Tá bom meu amigo? (Clóvis Oliveira da Costa, 37 anos, em 23/06/2020).

Tia Uia. Foto: Acervo da família

O objetivo do presente obituário é refletir sobre vida, projetos e morte ocasionada pela covid-19 a partir da memória de um dos filhos de Tia Uia sobre sua mãe, que foi uma liderança da comunidade quilombola da Rasa, em Búzios (RJ), e que teve o corpo levado por essa pandemia em 10 de junho de 2020. Clarivaldina Oliveira da Costa, que nasceu em 03 de junho de 1941, depois de adulta passou a ser conhecida como Tia Uia, foi casada com Ernane Costa, do qual ficou viúva por volta de 1985 e teve que lutar sozinha para criar os oito filhos. No quilombo, além dos filhos, Tia Uia contava com a companhia de sua mãe, Eva Maria Conceição, que ainda está viva aos 110 anos de idade.

Tia Uia e sua mãe Eva M. Conceição. Foto: Ricardo Alvez

E minha mãe criou os filhos sozinha, entendeu? Nunca deixou faltar nada pra gente, sempre foi uma guerreira. E sempre ajudando o pessoal na Rasa. (Clóvis Oliveira da Costa, 23/06/2020).

Quando entrei em contato com Clóvis, seu filho, para obter a permissão para elaborar este obituário, para que seu nome, imagem e exemplo de vida permaneçam na memória dos vivos, sobretudo de seus sucessores e dos demais quilombolas, depois de consultar seus irmãos sobre tal possibilidade, disse-me ter sido repreendido por eles/as, pois teriam dito que essa era uma iniciativa que ele não precisava consultá-los, visto que a história de sua mãe deveria ser conhecida e reconhecida por um número máximo de pessoas possíveis. Tal é o sentimento de honra e gratidão dos filhos em relação à mãe que fez da vida uma doação em defesa deles/as e de outros integrantes da comunidade.

Enquanto enviava-me áudios a respeito de sua mãe, Clóvis falava também de suas ações, pois, inspirado nos ensinamentos dela, estava atuando em um projeto do Quilombo de distribuição de cestas básicas de alimento e água na comunidade, que teriam, segundo ele, sido enviadas pela Associação das Comunidades Quilombolas do Estado do Rio de Janeiro (da qual sua mãe foi uma das associadas fundadoras) e por pessoas que os integrantes da nunca conheceram.

Além das imagens, Clóvis enviou-me fotos e áudios dele recordando as ações e projetos que sua mãe desenvolveu na comunidade quilombola da Rasa, como segue:

1º) Lembra que seus avós deixaram terrenos relativamente grandes para sua mãe e seu pai e que, devido ao fato de viverem em um território cobiçado na região, ao ficar viúva, como uma forma de se proteger, sua mãe foi assentando em terras que havia herdado famílias nordestinas que chegavam na comunidade com números elevados de crianças famintas pedindo alimentos. Ela ensinava que o mar era uma fonte de alimentação. Atualmente, segundo ele, existe mais de uma dúzia de famílias que chegaram do Nordeste assentadas em “terra de herança” de seus avós.

2º) Recorda com facilidade que a educação transmitida por sua mãe em relação a hospitalidade era extremamente rigorosa, pois quando chegava visita em casa, ela colocava “a gente pra comer na varanda e botava os de fora na mesa pra comer”. Afirma que a casa estava sempre cheia de sobrinhos dela e de outros parentes de longe que tiravam proveito da bondade dela, mas mesmo assim estava sempre alegre, o que teria lhe rendido o apelido de Tia.

3º) Afirma que tem entre 25 e 30 anos que sua mãe entrou no movimento quilombola, onde ela conseguiu algumas políticas públicas para a comunidade, como: um laboratório ortodôntico, cestas básicas de alimentos para as famílias, um projeto de pesca relacionado a maricultura, obtenção de equipamentos de informática (30 computadores) para ensinar às crianças da comunidade.

Por fim, é a falta de projetos, de políticas públicas e de cumprimento do dever constitucional do Estado e dos governos brasileiros que colocou a comunidade quilombola de Rasa e outros quilombos no território nacional em estado de precariedade e vulnerabilidade frente a pandemia da covid-19. Tia Uia, que ainda tinha muito a viver e a ensinar para sua comunidade, foi mais uma vítima do descaso e da prática genocida do governo brasileiro frente à pandemia. Na Rasa, até o dia da morte de Tia Uia, eram 14 pessoas infectadas, e ela foi à terceira vítima da covid-19 a vir a óbito na comunidade.

Devido às boas ações desenvolvidas por sua mãe na comunidade e por ela pertencer à igreja pentecostal Assembleia de Deus, ao final, Clóvis a definiu com as seguintes palavras: “Então minha mãe, aqui dentro da comunidade, foi uma mulher de Deus!”. Por isso, complementa ele: “Ela foi uma mulher que deixou o legado dela. (…) Isso é um pouquinho da história da minha mãe”.

Por: Osvaldo Martins de Oliveira
Professor Associado de Antropologia no Departamento e no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Pesquisador filiado à Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e vice-coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB) da UFES e coordenador do projeto de pesquisa “Africanidades Transatlânticas: cultura, história e memórias afro-brasileiras a partir do Espírito Santo” (O projeto desenvolvido por uma parceria celebrada entre a Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo, a Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo e a UFES).

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