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COLONIALISMO E CINEMA : O COVID-19 e o PASSAMENTO DE UMA CINEASTA GENIAL


Sarah Maldoror: griotte, revolucionaria, feminista, cineasta

A Sarah Maldoror

Que,
 Câmara no punho
 Combate a opressão,
 A alienação
 E desafia
 A Estupidez humana

Aimé Cesaire

Apresentadas somos e nesses parágrafos estão maravilhamentos e horizontes de sentimentos cruzados com Sarah Maldoror. A “griotte” Sarah em 1956 inseriu-se no grupo de atores negros de Paris, que formaram a Companhia de Arte Dramática Les Griots. Toto Bissainthe, atriz e cantora nascida em Cap Haitien (1934), Haiti, estreou nessa seleta companhia, que foi vanguarda do movimento da negritude. A Companhia era integrada unicamente por atores negros ou afrocaribenhos. Compartilhavam com Sarah Maldoror e Toto Bissainthe o senegalês Samba Ababakar, Timité Bassori, (ivoriano), Robert Liensol (Guadaloupe) e o diretor francês Roger Blin. Eles fizeram da Casa dos Estudantes Africanos, um espaço cultural de ensaios das obras de Jean Genet, especialmente, Les Négres, que foi apresentada pela primeira vez pela Companhia Les Griots. De autoria de Jean Paul Sartre ensaiaram a peça teatral Huis Clos (Entre 4 Paredes). De autoria de Aimé Césaire fizeram a estréia de “Et les chiens se taisaient”, obra de teatro publicada em Présence Africaine. O ativismo intelectual e anticolonialista girava também em torno desta revista Présence Africaine. Para ela a denúncia da opressão colonial esteve alavancada na relação direta com os povos de Argélia, Angola, Guiné-Bissau e Congo. Sarah conheceu por observação direta e trabalho e apreendeu muitos poemas e poetas militantes – Mario Pinto de Andrade (Angola), Aimé Cesaire (Martinica) e Léon Gontran Damas (Guiana). Anos depois, Sarah Maldoror dedicou-se a fazer documentários, gênero cinematográfico que explorou para narrar histórias de vida e memórias coletivas. Essas figuras uniram arte e política. Toto Bissainthe ficou exilada na França, proibida de entrar no Haiti pelo regime do ditado,r Papa Doc, J. C. Duvalier. Em 1984, Sarah Maldoror fez o “portrait” dessa artista “Toto Bisssainthe, chanteuse”. “Aimé Césaire, le masque des mots” (1986) é o título do documentário feito sobre esse poema de autoria do poeta amigo. Dez anos antes havia filmado “Martinica. Aimé Césaire, um homem, uma terra”, com roteiro escrito por Michel Leireis. Em 1995 filma o documentário sobre o poeta, intelectual e político León-Gontran Damas. Igualmente, o poeta haitiano René Depestre teve fragmentos de sua vida, pensamentos e poemas em um documentário da cineasta.

Brevemente apresentamos Sarah Maldoror aqui. Para tanto reunimos trechos de entrevistas que compõem uma espécie de autorretrato, de leitura direta de suas ideias, encontradas em fontes diversas.

Iniciamos pela identidade de Sarah, cujos pais eram de Guadalupe; ela nasceu em França, em 1939:

Sinto-me em casa em toda parte. Sou de toda parte e de lugar algum. Meus ancestrais eram escravos. No meu caso, isso torna as coisas mais difíceis. Os antilhenses me acusam de não viver nas Antilhas, os africanos dizem que não nasci no continente africano e os franceses me criticam por não ser como eles[1].

Se eu não me interesso pela minha própria história, quem vai se interessar?”

Quanto às classificações que lhe foram atribuidas e utilizo-as ou não, ela comentou em entrevista, em 1997:

O contexto histórico de meus inícios exigia um cinema militante que hoje permanece preso à minha pele: eu, como todo mundo, tenho muita dificuldade em trabalhar. Revolucionária e feminista: uma imagem negativa hoje que às vezes tenho que apagar para fazer filmes. O fato de ter feito Sambizanga (1972) e de estar no maquis ainda hoje faz acreditar que tenho três bombas nos bolsos…

Atualmente, estou trabalhando em um assunto para a RFO sobre os Irrmãos Lumière. Foi-me dito: ‘Não venha nos dizer que eles colaboraram durante a guerra etc’. Respondi que o que mais me interessava era que eles inventaram o cinema porque haviam participado de uma cerimônia de vodu! Foi assim que funcionou: é um aceno para os irmãos Lumière, algo engraçado.

A cineasta Sarah Maldoror expõe os modos de fazer cinema descolonizado, no mundo e sob o olhar do Outro, os colonizadores.

Claro que gosto de filmes realistas, mas o cinema não é a vida cotidiana. Só pode ser cotidiano se houver poesia, algo que você não percebe.

Filmar na África requer adaptação ao sol, sombra, vegetação, poeira e ritmo das pessoas. Sou muito sensível ao barulho africano que não encontramos em nenhum outro lugar: respeite o som africano, bem como o espaço do continente que o caracteriza tão fortemente. Um baobá nunca será uma cerejeira. Não podemos ter uma visão europeia de tempo, luz e som na África. Todos os assuntos tradicionais são possíveis, mas é assim que surge, ir contra as imagens limitadas que o povo da África tem. Minhas filmagens são bastante rápidas, mas eu as preparo bastante. Fiquei imaginando, por exemplo, como levar o escultor de La Pirogue éclatée de volta à casa dos escravos. Eu faço a pergunta enviando o script para ele e ele responde: “Eu entro como todo mundo pela porta!”.

Aproveite o tempo para ouvir! Eu me apaixonei à primeira vista por ele, mas eu deveria ter escrito o roteiro e retornado para vê-lo para discutir o assunto. Sempre queremos ir rápido demais. Terei que deixá-lo falar para expressar essa simplicidade que esconde grande sabedoria. Somente assim é possível demonstrar que existe outra cultura, outra sabedoria.

Temos que mostrar a África como ela é. Em seus belos cenários e em sua miséria, mesmo que a desilusão seja grande ao ver que lutamos muito para chegar lá. A África é celestial, mas eles também são terríveis. Não posso mais suportar que me digam que isso só vem da colonização. O que fazer hoje? A ausência de projetos é óbvia. Depois de fazer um filme sobre Guadalupe, eu gostaria de fazer um sobre essas crianças que participaram da guerra, que eu filmei e que agora são homens quebrados do passado e que foram confrontados com tantas mentiras.

Ao filmar, tento deixar a vida cotidiana e apresentar o sonho. Começo com a luz de uma pintura, de Rembrandt, por exemplo, porque se temos medo, não podemos ter uma luz brilhante. Quero que exista verdade, mas com um pouco de esperança. A realidade é muito triste…

Quando eu apresentei Sambizanga na Suécia, Ingrid Bergman me disse: “Por que essa beleza? Eu respondi que ela não precisava ser feia. Por que um camponês não deveria ter essa dignidade? A África deve ser pobre e suja e, quando um africano toca uma peça de madeira ou hoje uma peça de barbante, deve ser uma obra de arte! Fui criticada por fazer um filme muito pessoal em um contexto ativista, e ainda assim é esse filme que permanece! Vamos sair do “cinema de cabaça”: estamos perto do ano 2000! Vamos mergulhar no futuro, em vez de sempre nos perguntarmos o porquê de não haver água etc. Isso não significa não refletir sobre seu passado! Você precisa conhecer o seu passado para entender o futuro. Mas vamos ter outra visão.

Também vou filmar no Senegal um escultor que me fascina e porque gosto de pessoas que criam do zero. E eu tenho um projeto de longa metragem sobre um herói de Guadalupe que se rebelou contra a colonização. No entanto, na França, você pode falar sobre o futuro ou hoje, mas, acima de tudo, não fala sobre colonização, é sagrado!

Na França, ainda estamos condenados a uma certa marginalidade. Nem os franceses, nem os diretores, nem a televisão estão prontos para se abrir para o Outro quando é a única coisa que importa hoje, porque não faremos o contrário. Quanto ao financiamento de filmes africanos, eventualmente torna possível fazer filmes, mas não vê-los!

Às vezes funciona: propus uma história curta de Victor Serge, um autor que eu realmente gosto, e o Canal II aceitou. Eu gravei nos Invalides. Retratos gigantes de Lenin e Stalin foram desenhados no grande pátio. Quando o comandante chegou, ele queria parar tudo! Quando ele queria ver o diretor, ele não acreditava que fosse eu. Eu disse a ele que a cor não funciona … Ele ficou furioso. Eu aguentei, já que tínhamos autorização dada na apresentação do roteiro. Às vezes rimos![2]

Lembro-me de que durante uma filmagem na Guiné-Bissau, conheci mulheres que trouxeram óleo para trocá-las por tecidos. Eles cheiraram o tecido e o devolveram, dizendo: “Isto é da Rússia, não é bom. Estamos à procura de tecidos suecos”. Fiquei surpresa porque eles já sabiam: eu entendi o que Amilcar Cabral queria dizer quando a independência era apenas uma questão de dias e ele exclamou que era agora que as dificuldades iriam começar!

Isto é o que eu gostaria de mostrar ao filmar a África de hoje em suas esperanças e miséria. O cinema é essencial: faltam livros, escassez generalizada na educação. Escola e cultura são fundamentais. Além de respeitar a cultura do outro para evitar a barbárie!

Insurgência, guerras de libertação: mulheres[3], política e cinema

Falava-se mais da guerra do Vietnam, naquela época. As guerras de libertação na África estavam esquecidas. Aquela não era uma guerra francesa. Era mais fácil conseguir ajuda para ir filmar as guerras dos outros.

Sarah Maldoror está envolvida na luta dos movimentos de libertação na África. Ela divide sua vida com o líder fundador do Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA), o escritor angolano Mario de Andrade, com quem tera duas filhas. Entre seus companheiros de luta: Agostinho Neto, que se tornara presidente da República Popular de Angola; e Almicar Cabral, fundador do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde. Seu noivado foi tão poderoso que ela se viu no mato na Guiné-Bissau.

Sarah Maldoror não pôde se limitar a um espaço geográfico, daí seu envolvimento na luta dos militantes americanos negros. Ela estava assim envolvida na luta dos famosos Panteras Negras e também ao lado de outros grupos que combatiam a segregação racial nos Estados Unidos[4].

Apresentamos o filme Sambizanga (1972). A imagem Xavier regressa do trabalho. As pedras e o trator ficam para atrás. Chega no bairro, coloca o filho no colo, talvez menor de dois anos de vida, e atravessa a rua onde crianças brincam futebol. Ele entra no jogo rapidamente e ensaia ensinar o filho. Ele afasta-se e segue para casa, ao lado da esposa Maria. O diálogo do casal: Maria pergunta que tem demorado. Imagens das torturas a que foram submetidos os combatentes da guerra de independência de Angola, a força dos que resistiram a colonização portuguesa.

Sambizanga

Não foi divulgada no Brasil. Sabemos agora um pouco mais de sua obra e é para não esquecer jamais; quer dizer para falar incansavelmente e por muito tempo das conexões políticas, estéticas, revolucionarias que produziu na cinematografia na qual apresentou a mulher africana, as lutas contra a colonização dos corpos e experimentou o que é singular de filmar a África. Ela fez esse movimentos de construção ao longo de quase sessenta anos. As experiências de Sarah Maldoror foram radicais; ela acreditou no cinema para inserir as pessoas na história de suas lutas. Mulheres e homens foram os atores de fato.

Sarah Maldoror é falada com muita força no dia de sua morte, 13 de abril de 2020, em decorrência de complicações do Codiv 19.


[1] A frase da cineasta é citada na publicação Black Art. V. 5. Nº 2. 1982. P. 31 de acordo com ANDRADE, Annouchka de. “Um olhar sobre o mundo”, in Lúcia Ramos Monteiro (org.). África(s): cinema e revolução. São Paulo, Buena Onda Produções Artísticas e Culturais, 2016. (p. 84). Annouchka de Andrade é filha de Sarah Maldoror e Mário Pinto de Andrade.

[2] Entrevista a Sarah Maldoror realizada por Olivier Barlet. Paris, 1997. Publicada em 1/9/2002.
http://africultures.com/entretien-dolivier-barlet-avec-sarah-maldoror-guadeloupe-2493/ Acesso em 13/04/2020.

[3] A propósito desse foco ver: Berthet, Marina, Oriach, Stephan. Nouvelles représentations du corps et déconstruction de l’imaginaire colonial européen à travers trois films de Sarah Maldoror. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – UFJF v. 12 n. 2 jul. a dez. 2017 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print). https://periodicos.ufjf.br/index.php/TeoriaeCultura/article/view/12374 Acesso em 13 de abril de 2020

[4] Sarah Maldoror, la maquisarde cinématographique. Redaction Digitale de « Reporters » (RDR). 14 DE abril 2020. https://www.reporters.dz/sarah-maldoror-la-maquisarde-cinematographique/
Acesso em 14/04/2020.

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