Grupo participante da oficina: indígenas, agroextrativistas e pesquisadores (UFAC e UNICAMP).
No mês de outubro, entre os dias 19 e 21, o Laboratório de Antropologia e Florestas (Aflora)/Núcleo Acre do PNCSA realizou uma oficina de cartografia social com grupos que compõem, no Alto Juruá, uma rede de conhecimentos e conhecedores tradicionais. Trata-se de moradores da Reserva Extrativista do Alto Juruá que integram o Grupo Vida e Esperança e moradores de aldeias das etnias Kuntanawa, Ashaninka e Kaxinawá que vivem em de Terras Indígenas do entorno (localizadas nos rios Tejo, Breu e Amônia). A oficina reuniu cerca de 25 pessoas no Centro Yorenka Antame – Saberes da Floresta, localizado na sede do Município de Marechal Thaumaturgo, extremo oeste do Acre. O Centro é uma iniciativa da organização Apiwtxa, do povo Ashaninka do rio Amônia, criado em 2007 justamente para agregar e transmitir saberes e práticas das populações da floresta visando a disseminação de alternativas à tendência agropecuária de desenvolvimento e outras ameaças.
A oficina foi também um desdobramento das articulações que resultaram no Encontro Amazônico de Saberes Consorciados Contra do Desmatamento (que correponderia ao Encontro Regional do Acre), ocorrido em abril deste ano, em Cruzeiro do Sul, e que encaminhou, entre suas diretrizes, o fortalecimento da rede de conhecimentos e práticas entre os grupos participantes. O fato é que no Alto Juruá, há um trabalho de contato e intercâmbio entre moradores da Reserva e das Terras Indígenas que já tem uma certa maturidade e líderes locais de destaque e com trânsito entre os grupos, como Antonio Caxixa e Benki Pianko. Se seria possível datar este trabalho dos anos 90, quando da Aliança dos Povos da Floresta articulada na região pelo CNS e a então UNI, mais recentemente uma iniciativa liderada pela Comissão Pró-Índio do Acre e pelo Aflora procurou reativar esta rede de relações por meio de um projeto financiado pelo FUNBIO (2008-2011).
Grupo Vida e Esperança, liderado por Antonio Caxixa (no centro, apontando para o mapa), apresenta-se e mostra sua localização na base cartográfica do Alto Juruá. (Foto: Roberto Rezende)
Na oficina trabalhou-se, primeiramente, com a localização de todos os presentes em bases cartográficas (do Alto Juruá e do Acre). Cada grupo foi representado com uma cor e forma geométrica de forma a facilitar sua visualização no mapa. Um a um os grupos “se colocaram” e se apresentaram.
Grupo dos Ashaninka do rio Breu, liderados por Matcharenke, se apresenta perante os participantes. (Foto: Roberto Rezende)
Em seguida, após um trabalho sobre a memória dos grupos e o patrimônio de relações que cada um acumulou ao longo do tempo, os parceiros identificados (pessoas, universidades, ONGs, governo etc) foram também localizados espacialmente. Neste momento, um mapa do Brasil foi acrescentado ao trabalho. Reconhecendo que os parceiros, para cada grupo, têm papéis e presenças diferentes, com graus diferentes de proximidade, procurou-se também representar isto graficamente utilizando uma ferramenta conhecida como “diagrama de Ven”. Esclareceu-se que por “proximidade” se queria caracterizar o parceiro presente e com o qual se faz coisas juntos visando um mesmo propósito.
Aldenir “Bigode”, agente agroflorestal Kaxinawá, fala da experiência de sua aldeia no rio Breu para uma atenta plateia. (Foto: Enaiê Apel)
Um tempo do trabalho também foi reservado à discussão do contexto vivenciado por cada grupo ali presente: as situações de irregularidade na Reserva, como as cada vez mais intensas caçadas comerciais, e a iminência de um plano de manejo madeireiro sobre o qual os moradores sentem-se muito mal informados, e mesmo não consultados; a apreensão que os moradores da Terra Indígena Kaxinawá-Ashaninka do Breu vivem com a instalação dos vizinhos indígenas peruanos, o que afetou drasticamente o regime local de acesso e uso dos recursos naturais; a iniciativa do Centro Yorenka Antame/Apiwtxa de trabalhar na formação de jovens da sede municipal, em particular no Projeto de Assentamento Amônia, responsável por boa parte do desmatamento nas margens deste rio; a experiência de manejo e organização social e territorial dos Kaxinawá do rio Breu pôde atentamente conhecida pelos demais. Temas como estes, e outros, enriqueceram os debates e entendimento mútuo entre os presentes.
Jucelino, conhecido como Peba, trata da realidade da Reserva e, em particular, da vila Restauração, onde vive. (Foto: Enaiê Apel)
O objetivo era ir preparando o passo final da oficina: representar graficamente a rede de relações que os grupos ali reunidos constituem e acionam, mesmo que não permanentemente, para atingir objetivos que tenham relação com a construção de alternativas aos processos de desmatamento e destruição. Cada grupo utilizou então uma linha da “sua” cor (a cor com a qual for a plotado na base cartográfica) e deu início à construção da trama de suas relações.
Com apoio dos pesquisadores, indígenas do Breu traçam as linhas que os conectam a seus parceiros. (Foto: Enaiê Apel)
De maneira geral, as linhas mais fortes são aquelas locais, de vizinhança, ou seja, os nós da rede constituindo-se nas aldeias e comunidades, conectadas estas por relações que vão desde o parentesco à troca de sementes e mudas. Estas relações podem atravessar as fronteiras das Terras Indígenas e da Reserva Extrativista, estabelecendo conexões interétnicas, por assim dizer. Marechal Thaumaturgo, sede do município, e Cruzeiro do Sul, o centro urbano de maior porte da região, são nós significativos, embora nem sempre os parceiros ali buscados sejam propriamente “amigos”, ou militantes da mesma causa. A ideia é que podem haver relações que poderiam ser ditas “anti-rede”, ou mais distantes, embora relativamente frequentes (como parece ser o caso, por exemplo, da prefeitura ou algumas de suas secretarias). Rio Branco, a capital do estado, abriga a sede de nós-parceiros relevantes (Aflora/UFAC, CPI, OPIAC, AMAAIAC, ou mesmo o “governo” para alguns dos grupos presentes). Outras cidades, como Manaus, Campinas e Rio de Janeiro também integram a rede.
Eliéti e Natália, agricultoras da Reserva, “preservadoras” da floresta. (Foto: Roberto Rezende)
Ao final, mesmo tendo obtido um mapa parcial, o exercício permitiu a visualização de uma ampla trama de pontos conectados. Estas conexões apontam fundamentalmente para trocas de conhecimentos (técnicos e cosmológicos, de sementes, mudas, frutas, ideias e artes de cura, entre outros), conhecimentos que circulam livres e sem dono. Há ameaças e enfrentamentos em curso, forças do des-matamento e do des-conhecimento. Forças do mercado, econômico e politico. O fortalecimento da rede de conhecimentos tradicionais do Alto Juruá – um patrimônio inestimável de relações e possibilidades – deveria ser uma prioridade.