PROJETO DE MAPEAMENTO SOCIAL COMO INSTRUMENTO DE GESTÃO TERRITORIAL CONTRA O DESMATAMENTO E A DEVASTAÇÃO – PROCESSO DE CAPACITAÇÃO DE POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS
Projeto/ Doação: 10.2.1937.1
Relatório de Atividades Trimestrais
Período: Outubro a Dezembro de 2011
Bolsista: Terri Valle de Aquino
Brasília
2012
Relatório de Atividades
Nesse período, minha principal atividade como bolsista desse projeto foi a elaboração de um “mapa sobre as referências da presença de índios isolados nos altos rios Humaitá, Iboiaçu, Muru, Tarauacá, Jordão e Envira, situados no vale do Alto Juruá acreano, nas proximidades do Paralelo de 10º Sul, limite da fronteira internacional Brasil-Peru”.
O referido mapa, também denominado “mapa dos isolados” ou “mapa dos brabos” na fronteira Acre/Brasil-Ucayali/Peru, foi concebido inicialmente nas chamadas “oficinas de informação e sensibilização sobre povos indígenas isolados” realizadas, de maio de 2009 a dezembro de 2010, nas últimas aldeias das Terras Indígenas (TIs) Kaxinawá do Rio Humaitá, Kaxinawá do Seringal Independência, Kaxinawá do Rio Jordão, Alto Tarauacá, Kampa e Isolados do Rio Envira, Riozinho do Alto Envira, Jaminauá-Envira e Kulina do Rio Envira, já regularizadas pela Funai no Estado do Acre, ao longo da fronteira internacional Brasil-Peru e de suas imediações.
Sua elaboração foi possível graças às informações disponibilizadas por lideranças tradicionais, pajés, professores, agentes de saúde, agentes agroflorestais e outros representantes dos povos Kaxinawá, Ashaninka e Madijá, que compartilham suas terras indígenas com diferentes povos isolados. Outras informações foram mapeadas a partir de indicações fornecidas por moradores não indígenas de antigos seringais acreanos dos altos rios acreanos, que compartilham sazonalmente áreas de uso com esses povos isolados.
Contou também com informações concedidas por sertanista e mateiros da Frente de Proteção Etnoambiental Envira (FPEE), da Funai, que trabalham na base Xinane, situada na TI Kampa e Isolados do Rio Envira, e no posto de vigilância do Douro, localizado na TI Alto Tarauacá. Incluem ainda dados do levantamento preliminar, coordenado por este antropólogo, em dezembro de 2009, sobre a presença de isolados entre os moradores brancos dos últimos seringais (São Francisco, Santa Cruz, Novo Porto e Ceci) do alto rio Muru e dos derradeiros seringais (São João, São José e Repouso) do rio Iboiaçu.
O mapa acima mencionado procura dar conta de todos os casos de saques, vestígios, avistamentos e confrontos armados, ocorridos nas três últimas décadas, envolvendo índios isolados, de um lado, e integrantes das populações Kaxinawá, Ashaninka e Madijá, bem como de moradores brancos do entorno, além de sertanistas e mateiros da FPEE, de outro.
A maior parte dos casos de saques praticados pelos isolados tem como motivação a busca por novas tecnologias, especialmente ferramentas de metal, como terçados, machados e facas, que eles já utilizam na abertura de seus roçados e na construção de suas malocas tradicionais, além de panelas e outros utensílios de alumínio, bem como roupas, redes, cobertas, lonas, lençóis, cordas, linhas de náilon e outros bens industrializados. Quase todas as suas vítimas, sejam indígenas ou moradores brancos do entorno, reclamam que “os brabos roubaram tudo que tinham em casa”, deixando-os “só com a roupa do corpo”.
Os casos de vestígios materiais de sua existência são numerosos e diversos, tais como, rastros ou pegadas, acampamentos provisórios, tapiris e camas de palhas de jarina, moquéns, peras, cestos, paneiros, restos de comida, ossos de caças e cascos de jabutis, fogos, tições de fogo, flechas, tacanas para confecção de flechas e ainda sinais sonoros, como assopros, arremedando diversos tipos de aves e macacos, atribuídos aos isolados, especialmente quando passam dias pelas matas “pesquisando” nos arredores de aldeias indígenas e de colocações ocupadas por ribeirinhos brancos, bem como nas imediações da base Xinane e no posto do Douro, da FPEE.
Já os casos de avistamentos são mais raros e difíceis de serem registrados dada a estratégia adotada pelos “brabos” de se manterem invisíveis na floresta. Mas foram registrados encontros esporádicos com os mesmos por ocasiões de saques, caçadas e confrontos armados.
Foram ainda mapeadas as ocorrências de confrontos armados envolvendo os isolados e seus vizinhos indígenas e não indígenas no entorno. Alguns deles resultaram em mortes e feridos de ambos os lados, tanto de isolados, quanto de indígenas e moradores brancos do entorno, além de sertanistas e mateiros da FPEE.
O mapa contém 162 referências sobre a presença de índios isolados ocorridas, nas três últimas décadas, ao longo da região acreana fronteiriça e de suas cercanias. Nele, foram também mapeados seus territórios de habitação permanente, onde estão situadas suas malocas tradicionais e roçados, o uso sazonal de recursos naturais, suas trilhas de deslocamento pelas matas dos altos rios e igarapés e as áreas das TIs Kaxinawá do Rio Humaitá e Kaxinawá do Rio Jordão que foram destinadas para uso preferencial dos isolados.
Consta ainda nesse mapa uma proposta de delimitação de uma nova terra indígena destinada aos isolados, incluindo áreas por eles ocupadas tradicionalmente nas cabeceiras dos rios Muru e Tarauacá, tal como reivindicada tanto por lideranças e representantes Kaxinawá, quanto pela coordenação da FPEE.
De um total de 162 referências sobre índios isolados ocorridas nos últimos 31 anos, 118 casos, equivalente a 72,8% deste total, aconteceram justamente nos primeiros 11 anos do novo século XXI. Enquanto apenas 36 ocorrências, correspondentes a 22,5%, ocorreram nas duas últimas décadas do século passado, 12 delas (7,5%) nos anos de 1990 e 24 outras (15%) na década de 1980. Somente em oito casos (5%) não há informações de datas. Esses dados revelam uma recente e crescente presença de grupos de índios isolados nessa região acreana fronteiriça das proximidades do Paralelo de 10º Sul.
Das 162 referências sobre índios isolados na região acreana fronteiriça, foram registrados 51 casos de saques (31,5%) praticados por grupos de índios isolados nas aldeias Kaxinawá, Ashaninka e Madijá, bem como nas casas de moradores brancos do entorno e nas instalações das unidades de vigilância e proteção da FPEE. Foram ainda mapeados 31 casos de avistamentos de índios isolados (19,1%), 45 casos de vestígios materiais de sua existência (27,8%) e 35 ocorrências de confrontos armados (21,6%) envolvendo índios isolados nessa região acreana fronteiriça. Essas referências estão sistematizadas no quadro apresentado a seguir.
Quadro de referências da presença de índios isolados nos altos rios Muru, Tarauacá, Humaitá, Iboiaçu, Jordão e Envira, situados nas proximidades do Paralelo de 10º Sul, linha da fronteira internacional Brasil-Peru, no Estado do Acre
Região do Alto Rio Muru
|
Referência
|
2011/09
|
2008/06
|
2005/00
|
1999/90
|
1989/80
|
Sem data
|
Subtotais
|
Saques
|
5
|
3
|
2
|
–
|
–
|
–
|
10
|
Avistamentos
|
2
|
–
|
–
|
1
|
–
|
–
|
3
|
Subtotais
|
7
(4,3%)
|
3
(1,9%)
|
2
(1,2%)
|
1
(0,6%)
|
–
|
–
|
13
( 8%)
|
Região do Alto Rio Tarauacá
|
Saque
|
5
|
4
|
1
|
–
|
–
|
–
|
10
|
Avistamentos
|
–
|
1
|
–
|
–
|
–
|
–
|
1
|
Vestígios
|
2
|
–
|
–
|
–
|
–
|
–
|
2
|
Confrontos Armados
|
2
|
1
|
–
|
–
|
–
|
–
|
3
|
Mortes de Isolados
|
–
|
–
|
1
|
–
|
–
|
–
|
1
|
Mortes de Brancos
|
–
|
–
|
–
|
3
|
–
|
–
|
3
|
Subtotais
|
9
(5,5%)
|
6
(3,7%
|
2
(1,2%)
|
3
(1,9%)
|
–
|
–
|
20
(12,3%)
|
TI Kaxinawá do Rio Humaitá
|
Saques
|
–
|
–
|
1
|
1
|
5
|
–
|
7
|
Avistamentos
|
4
|
–
|
3
|
–
|
1
|
–
|
8
|
Vestígios
|
12
|
3
|
4
|
1
|
–
|
5
|
25
|
Confrontos Armados
|
2
|
2
|
–
|
–
|
–
|
–
|
4
|
Subtotais
|
18
(11,1%)
|
5
(3,1%)
|
8
(4,9%)
|
2
(1,2%)
|
6
(3,7%)
|
5
(3,1%)
|
44
(27,1%)
|
Região do Rio Iboiaçu
|
Saques
|
1
|
2
|
1
|
1
|
–
|
–
|
5
|
Avistamentos
|
1
|
–
|
–
|
–
|
–
|
–
|
1
|
Subtotais
|
2
(1,2%)
|
2
(1,2%)
|
1
(0,6%)
|
1
(0,6%)
|
–
|
–
|
6
(3,7%)
|
TI Kaxinawá do Rio Jordão
|
Saques
|
–
|
–
|
–
|
–
|
4
|
–
|
4
|
Avistamentos
|
–
|
3
|
1
|
–
|
1
|
–
|
5
|
Vestígios
|
1
|
1
|
1
|
–
|
3
|
–
|
6
|
Confrontos Armados
|
–
|
–
|
–
|
1
|
1
|
–
|
2
|
Morte de Isolado
|
–
|
–
|
–
|
–
|
1
|
–
|
1
|
Subtotais
|
1
(0,6%)
|
4
(2,5%)
|
2
(1,2%)
|
1
(0,6%)
|
10
(6,2%)
|
–
|
18
(11,1%)
|
Região do Alto Rio Envira
|
Saques
|
9
|
2
|
3
|
–
|
1
|
–
|
15
|
Avistamentos
|
9
|
2
|
–
|
–
|
1
|
1
|
13
|
Vestígios
|
7
|
1
|
–
|
–
|
2
|
2
|
12
|
Confrontos Armados
|
2
|
8
|
3
|
4
|
4
|
—
|
21
|
Subtotais
|
27
(16,6%)
|
13
(8%)
|
6
(3,7%)
|
4
(2,5%)
|
8
(4,9%)
|
3
(1,9%)
|
61
(37,6%)
|
Totais
|
64
(39,5%)
|
33
(20,4%)
|
21
(12,9%)
|
12
(7,4%)
|
24
(14,8%)
|
8
(4,9%)
|
162
(100%)
|
Essa significativa e recente presença de diferentes povos indígenas isolados no lado acreano da fronteira, muito provavelmente é uma decorrência do consistente aumento demográfico de suas populações, tanto em termos de crescimento vegetativo, como é o caso do povo isolado das nascentes do rio Humaitá, que é nativo dali, quanto por migração forçada de grupos isolados do território peruano para o lado brasileiro da fronteira, especialmente para as cabeceiras do igarapé Xinane, na TI Kampa e Isolados do Rio Envira. De fato, a partir de 2006, subgrupos de um novo povo isolado, provavelmente oriundos da Reserva Territorial Murunahua e/ou do Parque Nacional Alto Purus, áreas tradicionalmente ocupadas por diferentes grupos isolados no lado peruano da fronteira, estabeleceram suas malocas e roçados nas cabeceiras do igarapé Xinane, principal afluente da margem esquerda do alto rio Envira, em cuja foz encontra-se situada a base Xinane, da FPEE.
Além disso, têm ocorrido, sobretudo na última década, constantes deslocamentos sazonais de grupos Mashco-Piro nômades, oriundos do lado peruano da fronteira, especialmente das cabeceiras dos rios Madre de Dios e de seus afluentes Tahuamanu, los Amigos e las Piedras, para o território acreano. Por conta disso, nos últimos 11 anos, inúmeros casos de vestígios (acampamentos provisórios, tapiris, tições de fogo, restos de comida, ossos de caça, cascos de jabutis etc.) de grupos extensos Mashco-Piro têm sido encontrados, especialmente nos meses de “verão amazônico”, nos altos rios Iaco (TI Mamoadate), Chandless (Parque Estadual do Rio Chandless) e Envira (TI Kampa e Isolados do Rio Envira).
Outra observação importante, inferida do quadro acima, diz respeito ao fato de que são justamente nas regiões dos rios Humaitá e do alto rio Envira que têm ocorrido a maior parte das referências sobre a presença de grupos de índios isolados, correspondente a 44 casos (27,1%) e 61 casos (37,6%), respectivamente. Nestas duas regiões acreanas fronteiriças foram registradas 105 das 162 referências, o que equivale a 64,8% deste total. Vale ressaltar que são justamente nas cabeceiras desses dois rios acreanos onde se encontram as malocas e roçados de três diferentes povos isolados que habitam permanentemente a região acreana fronteiriça. E também por onde se deslocam sazonalmente, como é o caso da TI Kampa e Isolados do Rio Envira, bandos de Mashco-Piro nômades vindos do lado peruano da fronteira.
Diferentemente dos três grupos isolados que possuem áreas de habitação permanente nas nascentes do rio Humaitá e nas cabeceiras dos igarapés Xinane e Riozinho, onde foram mapeadas suas malocas e roçados, os grupos Mashco-Piro se deslocam por uma extensa região de florestas de terras firmes colinosas dos divisores de águas das nascentes de quatro grandes bacias hidrográficas da Amazônia peruana, formadas pelos vales dos altos rios Madre de Dios, Purus, Juruá e Ucayali.
Fora desse eixo central de deslocamentos de diferentes grupos Mashco-Piro, alguns de seus bandos nômades, cada um deles constituído por 80 a pouco mais de 100 índios, adentram o território acreano pelas cabeceiras de três rios binacionais, o alto Iaco e o igarapé Abismo, seu principal afluente da margem direita, o alto rio Chandless, no parque estadual de mesmo nome, e o alto rio Envira, na TI Kampa e Isolados do Rio Envira.
No verão de 2011, foi encontrado um grande acampamento Mashco-Piro no igarapé Paulo Ramos, nas proximidades de Extrema, última aldeia Manchineri da TI Mamoadate. Até bem pouco tempo atrás, suas trilhas de deslocamentos só passavam pelas cabeceiras do Iaco e pelo Abismo, longe das aldeias Manchineri e Jaminawa, mas agora estão descendo muito o rio Iaco, até uma hora de caminhada da aldeia Extrema.
Em agosto de 2010, também no auge do verão amazônico, dois mateiros da base Xinane da FPEE, Chicão e José Oberlane, durante uma caçada realizada nas matas do igarapé Txõpo, afluente da margem esquerda do alto rio Envira, encontraram um acampamento recém usado por um grupo extenso Mashco-Piro. Neste acampamento foram encontrados 25 tapiris, 77 cascos de jabutis, diversas cabeças de antas e ossadas de outras caças grandes (queixadas, porquinhos e veados), de macacos (preto e capelão) e de ave (nambu, jacu, cujubim e mutum).
Nos últimos anos, segundo o sertanista Meirelles, grupos Mashco-Piro nômades, que anteriormente já haviam invadidos e ocupados a base Xinane, colocando em fuga todos os servidores da FPEE, têm passado temporadas no alto Envira, inclusive no tempo das chuvas de inverno, quando antes só andavam por lá nos meses de verão amazônico.
Como afirma o referido sertanista, o calendário de deslocamento dos grupos Mashco-Piro está mudando na região do alto rio Envira. Provavelmente, em decorrência das invasões patrocinadas por madeireiros ilegais e empresas petrolíferas no lado peruano da fronteira.
Os casos de saques
Observa-se, no quadro abaixo, que dos 51 casos de saques praticadas pelos “brabos” nas aldeias indígenas, nas casas de moradores brancos do entorno e nas instalações da FPEE (base Xinane e posto do Douro), ocorridos nas últimas três décadas, 39 deles, equivalente a 76,5% deste total, foram registrados justamente no período de 2000/11. Enquanto apenas dois outros casos de saques (3,9%) aconteceram nos anos de 1990 e 10 outros (19,6%%) na década de 1980.
Percebe-se ainda no quadro abaixo que 31 dos 51 casos de saques, equivalente a 60,8% deste total, ocorreram no período de 2006/11 e os outros oito, correspondentes a 15,7%, entre 2000/05. A maior parte deles aconteceu nas regiões dos altos rios Muru e Tarauacá, justamente no interior da nova terra indígena proposta para os isolados pela coordenação da FPEE e pelos Kaxinawá dos rios Humaitá, Jordão e Tarauacá, onde foram mapeados 20 de suas 51ocorrências de saques, correspondente a 39,2% desse total.
Quadro dos saques praticados pelos isolados, nas três últimas décadas, na região dos altos rios
acreanos nas proximidades do Paralelo 10, limite da fronteira internacional Brasil-Peru
Região
|
2011/09
|
2008/06
|
2005/00
|
1999/90
|
1989/80
|
Subtotal
|
Alto Muru
|
5
|
3
|
2
|
–
|
–
|
10
|
Alto Tarauacá
|
5
|
4
|
1
|
–
|
–
|
10
|
Rio Humaitá
|
–
|
–
|
1
|
1
|
5
|
7
|
Rio Iboiaçu
|
1
|
2
|
1
|
1
|
–
|
5
|
Rio Jordão
|
–
|
–
|
–
|
–
|
4
|
4
|
Rio Envira
|
9
|
2
|
3
|
–
|
1
|
15
|
Totais
|
20
(39,2%)
|
11
(21,6%)
|
8
(15,7%)
|
2
(3,9%)
|
10
(19,6%)
|
51
(100%)
|
A estratégia adotada pelos isolados é levar tudo o que podem carregar das casas saqueadas, para só depois, já no meio das matas, fazerem a triagem dos bens que pretendem levar para suas malocas. Dos quatro povos isolados, os grupos Mashco-Piro nômades quase não praticam saques.
Se os bens saqueados pelos isolados não são assim tão sofisticados para os padrões de consumo urbano, constituem, no entanto, tudo o que suas vítimas haviam acumulado em suas vidas. Por conta disso, tanto os Kaxinawá, Ashaninka e Madijá, quanto os moradores brancos do entorno, estão reivindicando da FPEE, a indenização dos bens saqueados pelos “brabos” de suas casas. E algumas dessas casas foram saqueadas mais de uma vez, como ocorreu com o seu Didi no seringal Ceci, último morador do alto rio Muru, que teve a sua moradia saqueada três vezes (em 2004, 2006 e 2008), com intervalos de dois anos a cada saque.
A partir de 2006, com a chegada de novos subgrupos isolados nas cabeceiras do Xinane, houve uma redistribuição territorial entre os diferentes grupos isolados. Aqueles grupos de índios isolados das nascentes do Humaitá, por exemplo, que anteriormente freqüentavam os arredores da base Xinane, situada na foz do igarapé de mesmo nome com o alto rio Envira, passaram a se deslocar com mais freqüência pelos altos rios Muru e Tarauacá, ou seja, por territórios de uso cada vez mais distantes de suas áreas de habitações permanentes, em busca de ferramentas de metal e outros bens industrializados, e de recursos florestais, como a coleta de tacanas para confecções de flechas e de pupunhas brabas para fabricação de arcos, de áreas mais abundantes em caça e pesca e até mesmo à procura de sementes agrícolas dos roçados de seus vizinhos indígenas e não indígenas de suas vizinhanças, como manivas de macaxeira, mudas de bananeiras, sementes de milho e de outros legumes, para cultivarem em seus próprios roçados. Como aconteceu nos roçados e bananais da base Xinane, que passaram a ser constantemente visitado pelos isolados, sobretudo a partir de 2006, quando subgrupos de um novo povo isolado, oriundos do lado peruano da fronteira, estabeleceram-se nas cabeceiras desse mesmo igarapé Xinane, na TI Kampa e Isolados do Rio Envira.
Por outro lado, os diferentes grupos isolados existentes atualmente nessa região acreana fronteiriça têm evitado qualquer tipo de contato direto com estranhos, sejam eles índios contatados, ou moradores brancos do entorno e até mesmo sertanistas e mateiros da FPEE. “Os isolados querem as nossas coisas, especialmente ferramentas de metal e panelas de alumínio, além de redes, cobertas, roupas, lençóis, cordas de náilon e manilha, mas não querem manter nenhum contato regular com a gente e não aceitam a nossa presença. Muito provavelmente porque já sofreram algum tipo de violência, massacre e correria num passado não tão distante assim. E também porque têm medo de doenças infecto contagiosas que a gente pode lhes transmitir e para as quais eles não são imunes”, assevera o sertanista Meirelles, até bem pouco tempo atrás coordenador da FPEE.
Os casos de avistamentos
Já em relação aos avistamentos de índios isolados, observa-se que 26 dos seus 31 casos, equivalente a 83,8% deste total, ocorreram justamente nos primeiros 11 anos do novo século XXI. Outros três casos (7,5%) aconteceram na década de 1980 e apenas um caso (3,2%) foi registrado nos anos de 1990, conforme dados disponibilizados no quadro abaixo.
Pelo fato dos isolados optarem por permanecer numa situação de invisibilidade, torna-se muito difícil avistá-los de perto, a não ser quando são surpreendidos na mata por caçadores indígenas e não indígenas, ou quando são vistos saqueando algumas aldeias, acampamentos de caçada e pescaria e residências.
Os avistamentos, quase sempre, são muito rápidos e fugazes. “É muito difícil avistá-los, a não ser de relance, porque eles procuram logo se esconder na mata. Os isolados cultivam o hábito da invisibilidade”, assevera o sertanista Meirelles.
Quadro de avistamentos de índios isolados, nas três últimas décadas, na região dos altos rios
acreanos nas proximidades do Paralelo 10, limite da fronteira internacional Brasil-Peru
Região
|
2011/09
|
2008/06
|
2005/00
|
1999/90
|
1989/80
|
S/ datas
|
Subtotal
|
Alto Muru
|
2
|
–
|
–
|
1
|
–
|
–
|
3
|
Alto Tarauacá
|
–
|
1
|
–
|
–
|
–
|
–
|
1
|
Rio Humaitá
|
4
|
–
|
3
|
–
|
1
|
–
|
8
|
Rio Iboiaçu
|
1
|
–
|
–
|
–
|
–
|
–
|
1
|
Rio Jordão
|
–
|
3
|
1
|
–
|
1
|
–
|
5
|
Rio Envira
|
9
|
2
|
–
|
–
|
1
|
1
|
13
|
Totais
|
16
(51,6%)
|
6
(19,3%)
|
4
(12,9%
|
1
(3,2%)
|
3
(9,6%)
|
1
(3,2%)
|
31
(100%)
|
Nos inúmeros sobrevoos já realizados pela coordenação da FPEE sobre a região fronteiriça das proximidades do Paralelo de 10º Sul, apenas os índios isolados que habitam as nascentes do rio Humaitá tem sido vistos e fotografados. E mesmo assim, apenas seus integrantes masculinos (velhos adultos, jovens e meninos). E todos bem pintados de urucum e/ou jenipapo, deixam-se fotografar, porque as mulheres sempre se escondem dentro de suas malocas, ou correm para as matas próximas. Já os isolados das cabeceiras dos igarapés Riozinho e Xinane nunca foram avistados nos inúmeros sobrevoos promovidos, desde 1989, pela coordenação da FPEE nessa região acreana fronteiriça. O sertanista Meirelles suspeita que eles já tenham sido alvos de algum tipo de bombardeio aéreo, quando ainda habitavam no lado peruano da fronteira.
Os casos de vestígios
No tocante aos vestígios materiais de sua existência, observa-se que 32 de um total de 45 casos, equivalente a 71,1% deste total, também ocorreram nos primeiros 11 anos do novo século XXI, enquanto apenas um caso (2,2%) foi registrado ma década de 1990 e cinco outros (11,1%) nos anos de 1980. Apenas sete outros casos (ou seja, 15,6% deste total), encontram-se sem registros de datas. Por outro lado, não foram mencionados casos de vestígios de índios isolados nos altos rios Muru e Iboiaçu, conforme se podem observar nos dados contidos no quadro abaixo.
Quadro dos casos de vestígios de índios isolados, nas três últimas décadas, na região dos altos rios
acreanos das proximidades do Paralelo 10, limite da fronteira internacional Brasil-Peru
Regiões
|
2011/09
|
2008/06
|
2005/00
|
1999/90
|
1989/80
|
S/ datas
|
Subtotal
|
Alto Muru
|
–
|
–
|
–
|
–
|
–
|
–
|
–
|
Alto Tarauacá
|
2
|
–
|
–
|
–
|
–
|
–
|
2
|
Rio Humaitá
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12
|
3
|
4
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1
|
–
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5
|
25
|
Rio Iboiaçu
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–
|
–
|
–
|
–
|
–
|
–
|
–
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Rio Jordão
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1
|
1
|
1
|
–
|
3
|
–
|
6
|
Rio Envira
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7
|
1
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–
|
–
|
2
|
2
|
12
|
Totais
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22
(48,9%)
|
5
(11,1%)
|
5
(11,1%)
|
1
(2,2%)
|
5
(11,1%)
|
7
(15,6%)
|
45
(100%)
|
Como já mencionado acima, dentre os diversos tipos de “vestígios dos brabos” foram mencionados: rastros, trilhas, acampamentos improvisados, tapiris, camas de palhas de jarina, moquéns, restos de comida, olhos de tacana para confecção de flechas, tições de fogo e flechas, além de “tiros de espingardas” e outros “sinais sonoros”, como arremedos de cantos de diversas aves e macacos, supostamente atribuídos a eles.
As ocorrências de confrontos armados
Por fim, observa-se que 21 das 35 ocorrências de confrontos armados mapeadas nos últimos 31 anos, equivalente a 60% deste total, aconteceram no período de 2000/11, envolvendo um caso comprovado de assassinato de um índio isolado, em 2000, no seringal Oriente do rio Douro, afluente da margem direita do alto rio Tarauacá, na TI Alto Tarauacá. Enquanto apenas oito casos (22,9%) de conflitos armados ocorreram nos anos de 1990, dentre os quais três casos de mortes de moradores brancos à flechadas, um seringueiro nas proximidades da sede do seringal Alegria, no alto rio Douro, em 1997, e duas mulheres no São Paulo, último seringal do alto rio Tarauacá, em 1996. Foram registrados ainda seis outros casos (17,1%) de conflitos armados na década de 1980, incluindo a morte de um índio isolado, em 1988, por um grupo de caçadores Kaxinawá no igarapé Papavô, afluente da margem esquerda do alto rio Jordão, na TI Kaxinawá do Rio Jordão.
Os envolvidos no assassinato de um índio isolado no rio Douro, em 2000, foram os únicos a serem responsabilizados em Juízo. Por conta disso, tiveram que responder a um processo criminal pela morte desse índio isolado. O criminoso José Lourenço da Silva, conhecido como “Trubada”, encontra-se foragido desde então. E seus companheiros foram acusados por “crime de ocultação de cadáver” e foram condenados a prestar serviços comunitários na sede do Município de Jordão, onde residem até hoje. Essa ação judicial certamente inibiu a continuidade das violências praticadas contra os índios isolados nessa região acreana fronteiriça. E também contribuiu para a demarcação física da TI Alta Tarauacá, no mesmo ano, e a retirada de todos os seus moradores brancos. A referida terra indígena é a única destinada exclusivamente aos isolados nessa região acreana fronteiriça.
Quadro das ocorrências de confrontos armados envolvendo índios isolados, nas três últimas décadas, na região dos altos rios acreanos das proximidades do Paralelo 10, limite da fronteira internacional Brasil-Peru
Região
|
2010/09
|
2008/06
|
2005/00
|
1999/90
|
1989/80
|
Subtotal
|
Alto Muru
|
_
|
–
|
–
|
–
|
–
|
–
|
Alto Tarauacá
|
2
|
1
|
1*
|
3**
|
–
|
7
|
Rio Humaitá
|
2
|
2
|
–
|
–
|
–
|
4
|
Rio Iboiaçu
|
–
|
–
|
–
|
–
|
–
|
–
|
Rio Jordão
|
–
|
–
|
–
|
1
|
1+1* =2
|
3
|
Rio Envira
|
2
|
8
|
3
|
4
|
4
|
21
|
Totais
|
6
(17,1%)
|
11
(31,5%)
|
4
(11,4)
|
8
(22,9%)
|
6
17,1%)
|
35
(100%)
|
*morte de índio isolado; **mortes de moradores brancos do entorno
Quadro das ocorrências de confrontos armados envolvendo índios isolados, nas três últimas décadas, na região dos altos rios acreanos das proximidades do Paralelo 10, limite da fronteira internacional Brasil-Peru.
Região
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2010/09
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2008/06
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2005/00
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1999/90
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1989/80
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Subtotal
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Alto Muru
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_
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–
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–
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–
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–
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–
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Alto Tarauacá
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2
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1
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1*
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3**
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–
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7
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Rio Humaitá
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2
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2
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–
|
–
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–
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4
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Rio Iboiaçu
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–
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–
|
–
|
–
|
–
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–
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Rio Jordão
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–
|
–
|
–
|
1
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1+1* =2
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3
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Rio Envira
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2
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8
|
3
|
4
|
4
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21
|
Totais
|
6
(17,1%)
|
11
(31,5%)
|
4
(11,4)
|
8
(22,9%)
|
6
17,1%)
|
35
(100%)
|
Situada na margem direita do alto rio Envira, quase em frente à foz do igarapé Xinane, seu principal afluente da margem esquerda, a base Xinane encontra-se atualmente numa situação de grande vulnerabilidade, porque está praticamente cercada por diferentes povos isolados. A distância desta base da FPEE até as malocas e roçados dos “brabos” das nascentes do Humaitá é de apenas 24,5 quilômetros em linha reta. E desta base até as malocas e roçados dos “brabos” das cabeceiras do Riozinho é de aproximadamente 26 quilômetros em linha reta. E dela até as malocas e roçados dos isolados das cabeceiras do Xinane, recém chegados do lado peruano da fronteira, é cerca de 25,0 km em linha reta. Distâncias consideradas muito pequenas para os “brabos”.
Por volta de 1999, a base Xinane foi invadida por um bando grande de Mashco-Piro, que colocou em fuga todos os servidores da FPEE que, naquela ocasião, por lá se encontravam. No ano seguinte, no contexto da demarcação física da TI Kampa e Isolados do Rio Envira, suas instalações foram totalmente queimada pelos “brabos” das nascentes do Humaitá. Tudo porque a picada da demarcação física da referida terra indígena, que estava sendo aberta poucos dias antes, passava muito próxima de suas malocas tradicionais e de seus roçados.
Em 4 de junho de 2004, o sertanista Meirelles levou uma flechada no rosto que varou no pescoço, bem nos arredores dessa base, enquanto subia o rio Envira para pescar no igarapé Xinane. Só resistiu aos ferimentos porque foi resgatado por um helicóptero do Exército solicitado pelo ex-governador Jorge Viana e pelo então senador Tião Viana;
No verão de 2003, após matarem uma mulher Ashaninka e ferirem suas duas crianças nas cabeceiras do alto rio Juruá peruano, acima da foz do rio Vacapistea, um grupo extenso Mashco-Piro sofreu uma correria punitiva dos Ashaninka da aldeia Dulce Glória, quando foram massacrados dezenas deles, inclusive mulheres, velhos e crianças..
Recentemente, em 23 de julho de 2011, a base Xinane foi cercada e invadida por um bando armado de narcotraficantes peruanos, ocasião em que a Polícia Federal, requisitada pela Funai para retomá-la, prendeu o traficante português Joaquim Antônio Custódio Fadista, preso nessa mesma base meses antes, quando descia o rio Envira numa ubá indígena, vindo sozinho do lado peruano da fronteira.
Por fim, se as relações entre a FPEE e as populações indígenas do alto rio Envira foram quase sempre marcadas, até bem pouco tempo atrás, pelo distanciamento das comunidades Madijá e Ashaninka, estes últimos recomendaram ao governo do Estado do Acre, nas duas oficinas de etnozoneamento realizadas em suas aldeias em 2010 e 2011, a exclusão da base Xinane da TI Kampa e Isolados do Rio Envira, provavelmente por se sentirem excluídos das ações de proteção da FPEE, que são destinadas exclusivamente aos isolados. Para pacificar essas relações e desarmar os espíritos, torna-se necessário que a coordenação da FPEE estabeleça novas relações de parceria com as comunidades indígenas do alto rio Envira. Essa mesma solicitação por participação nas ações de proteção aos “brabos” em suas terras está sendo reivindicada pelos Kaxinawá dos altos rios Humaitá, Jordão e Tarauacá.