Nova Cartografia Social Da Amazônia

Marco Legal – “Conhecimentos Tradicionais”


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Sheilla Dourado

A votação do PL 7735/2014 na Câmara dos Deputados em sessão extraordinária no último dia 27 decepcionou os representantes de povos e comunidades tradicionais e de organizações da sociedade civil que apoiam suas causas. Se a aprovação de algumas emendas no Senado havia representado certo avanço no atendimento de interesses dos chamados “detentores” de conhecimentos tradicionais associado ao patrimônio genético, a votação na Câmara significou um verdadeiro retrocesso, ao rejeitar 10 das 23 emendas do texto recebido do Senado (PL 02/2015). As emendas eram medidas que amenizavam, contudo não solucionavam os diversos defeitos apontados nessa proposta legislativa. Com a votação na Câmara dos Deputados, o pouco que havia sido melhorado foi ainda mais reduzido.

No Senado, o PL 02/2015 havia tramitado em regime de urgência desde 24 de fevereiro deste ano. A votação do texto foi concluída no dia 15 de abril nessa casa legislativa e a proposta voltou à Câmara dos Deputados em 23 de abril. No texto final no Senado haviam sido aprovadas 23 (vinte e três) emendas que, segundo os especialistas, amenizavam os efeitos negativos da proposta que saiu da Câmara.

O texto final do PL 7735/2014 segue agora da Câmara dos Deputados para a sanção presidencial.

O parecer sobre as emendas do Senado apresentado pelo relator do PL 7735/2014, o Deputado Alceu Moreira (PMDB/RS), usou largamente o argumento da pressa, da urgência e da necessidade de se evitar morosidades e excessos de burocracia, tanto na aprovação da lei quanto no seu cumprimento, quando vigente. Vale lembrar que o deputado Moreira é membro da Frente Parlamentar Agropecuária, também conhecida como “Bancada Ruralista”, cuja influência também havia impedido a  ratificação do Protocolo de Nagoya, tratado internacional que implementa o terceiro objetivo da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) e que diz respeito à repartição justa e equitativa de benefícios. O lobby do agronegócio evitou que o texto do Protocolo de Nagoya fosse aprovado no Congresso Nacional, etapa que antecede a ratificação do tratado pelo Poder Executivo.

Entre as emendas rejeitadas pela Câmara, estão a inclusão do “agricultor familiar” na categoria “agricultor tradicional”, e a adoção da expressão “povos indígenas” em substituição a “populações indígenas”. Os senadores seguem contrariando uma antiga demanda dos movimentos indígenas brasileiros, tendo em vista ainda que essa expressão já está consagrada nas normas internacionais e nacionais, a exemplo da Convenção 169 da OIT sobre povos indígenas e tribais (1989), a Declaração das Nações Unidas dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas (2007) e o Decreto federal brasileiro n. 6.040 (2007).

Com o argumento de que se pretende evitar o desestímulo ao uso da biodiversidade brasileira com o ônus econômico que representa a repartição de benefícios, foi rejeitada a emenda que retirava a exigência de que o acesso ao patrimônio genético e aos conhecimentos tradicionais associados fosse “determinante” para as características funcionais ou formação do apelo mercadológico do produto economicamente explorado. Retorna ao texto final do PL a exigência de que, para que haja obrigatoriedade de repartição de benefícios, o acesso ao patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional deve ser elemento “principal” de agregação de valor do produto acabado. Sendo secundário, não haverá obrigatoriedade de repartição de benefícios.

A Emenda 16 propunha alterar o artigo 19 definindo que às terras indígenas, aos territórios quilombolas, às unidades de conservação da natureza de domínio público e às áreas prioritárias para a conservação e a utilização sustentável da biodiversidade seriam destinados os benefícios repartidos na modalidade não monetária decorrentes de exploração econômica de produto acabado ou material reprodutivo. Contudo, os deputados entenderam que destinar repartição não monetária de benefícios a territórios tradicionalmente ocupados e áreas protegidas resultaria na burocratização dessa modalidade de repartição e no consequente desestímulo à sua utilização.

No parecer da Câmara, houve uma interpretação equivocada do artigo 21 alterado no Senado por meio da Emenda 17. Parece não ter ficado claro aos deputados  que o dispositivo previa a oitiva dos “órgãos oficiais” de defesa dos direitos de povos indígenas e comunidades tradicionais. Exemplos de órgãos oficiais são a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e a Fundação Cultural Palmares (FCP), ambas vinculadas ao Executivo federal. Na justificativa do parecer, a participação de representantes de povos e comunidades tradicionais é considerada uma dificuldade que “poderá tornar o processo moroso e inexequível na prática”. O tom de urgência justificaria qualquer atropelo, principalmente a supressão da participação de representantes de povos e comunidades tradicionais.

No processo de discussão e de tramitação do novo marco regulatório do patrimônio genético e conhecimentos tradicionais, os poderes instituídos tentaram manter distante a representação de povos e comunidades tradicionais, privilegiando o interesse do agronegócio e das empresas usuárias de biotecnologia nesse campo de disputas.

            Sob o ponto de vista dos povos e comunidades tradicionais e entidades que apoiam suas causas, o texto final do projeto de lei aprovado na Câmara dos Deputados evidencia inegável retrocesso na regulação jurídica do acesso e uso de recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados no Brasil. Do ponto de vista dos “usuários” – leia-se “empresas usuárias de biotecnologia” – esse marco regulatório soluciona entraves burocráticos, isenta a aplicação de penalidades, facilita a acumulação econômica a partir do uso da biodiversidade e dos saberes a ela associados, sendo resultado do lobby dessas empresas, inclusive do agronegócio, junto ao Poder Legislativo.

Não é difícil prever que o projeto de lei seja assim sancionado pela Presidência da República, sem nenhuma preocupação com os interesses de povos e comunidades tradicionais.

 

Confira os seguintes arquivos originais:

 

 

Na Câmara dos Deputados

Emendas aprovadas: 1, 2, 5, 6, 7, 9, 10, 13, 15, 18, 20, 22 e 23

Emendas rejeitadas: 3, 4, 8, 11, 12, 14, 16, 17, 19 e 21

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